Um avião a jato não é uma mercadoria
qualquer. Seu preço equivale ao capital de uma empresa de médio a grande porte.
Um Legacy fabricado pela Embraer sai por 25 milhões de dólares. A entrega de uma
dessas joias ao comprador é uma combinação de extensa burocracia com minuciosa
verificação de especificações técnicas, acompanhadas de chique e austero
cerimonial de celebração. Ninguém vende (ou compra) uma “empresa” de dezenas de
milhões sem ao menos brindá-la com uma taça de champanhe.
O Embraer Legacy 600 foi apresentado ao
público em junho de 2001. Baseado no Embraer 135, exibia vários aprimoramentos,
inclusive tanques extras de combustível e winglets — uma graciosa dobra para
cima, em forma de lâmina, com um ângulo de aproximadamente 80 graus — na ponta
de cada asa. Seu sistema aviônico (o conjunto de instrumentos eletrônicos de
comunicação, navegação, monitoramento do voo e indicadores meteorológicos)
incluía um sofisticado TCAS.
TCAS em operação mostrando a
presença de duas aeronaves representadas por losangos
Sistema de alerta e prevenção de colisões,
o Traffic Collision Avoidance System, TCAS, passa à tripulação avisos sobre um
possível tráfego aéreo em sentido contrário, aproximadamente quarenta segundos
antes que o choque possa acontecer. Além de alarmes visuais e sonoros, o TCAS
indica aos pilotos as manobras necessárias para evitar a colisão. Em resumo, o
TCAS permite que aeronaves voando uma em direção à outra “conversem” entre si,
como que dizendo: “Você sobe e eu desço.”
Para que o TCAS funcione, é preciso que
ambos os aviões sejam equipados com o aparelho e que, obviamente, estejam
ligados. É preciso também que os transponders (o sistema que emite sinais para
os controladores em terra, indicando dados do voo e identificação da aeronave)
tenham sido ativados. Sem transponder, um avião perde seu TCAS e se torna uma
ameaça pairando no ar. Não foi à toa que uma das primeiras providências dos
pilotos camicases do 11 de Setembro foi desligar os transponders dos quatro
Boeings que sequestraram.
Após as negociações de praxe, a empresa de
táxi-aéreo ExcelAire decidiu comprar, da Embraer, jatos EMB-135BJ Legacy para
incorporá-los a sua frota. A entrega da primeira unidade foi combinada para a
última semana de setembro de 2006. Para trasladar o avião de São José dos Campos
para Fort Lauderdale, na Flórida, com escala em Manaus, o setor operacional da
ExcelAire escolheu os pilotos Joseph (Joe) Lepore, de 42 anos, e Jan Paul
Paladino, de 34.
Eles chegaram ao Brasil na segunda-feira,
25 de setembro de 2006, e tinham previsão de volta, pilotando o Legacy novinho
em folha, no sábado da mesma semana. Lepore e Paladino tinham quatro dias de
treinamento pela frente, de modo que pudessem fazer, com segurança, a longa
jornada de retorno para casa.
O Legacy 600 vendido pela Embraer à
ExcelAire recebeu o prefixo americano N600XL, já que a bandeira do jatinho seria
a dos Estados Unidos. Na linguagem aeronáutica, usada por pilotos e
controladores no mundo inteiro, N600XL é November Six Hundred X-Ray Lima.
Nos dias 26, 27 e 28 de setembro, além de
planejarem o voo de traslado, estudando cartas aeronáuticas que haviam trazido
para o Brasil, Joe Lepore e Jan Paladino, acompanhados de instrutores da
Embraer, pilotaram o X-Ray Lima três vezes no espaço aéreo próximo a São José.
Nessas ocasiões, se alternaram na poltrona da esquerda do cockpit, a de
comandante, posto que, por sinal, Paladino, tal como seu colega, ocuparia nas
operações rotineiras da ExcelAire.
Durante os testes, Lepore, pouco ambientado
com o Legacy, preferiu não fazer a manobra de estol (perda de sustentação), na
qual o avião, literalmente, despenca por alguns segundos. Deixou a tarefa para
Paladino, que tinha muito mais experiência em jatos da Embraer.
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Os americanos Joe Lepore e
Jan Paul Paladino (de terno),
pilotos do jato Legacy,
chegam em Long Island,
nos Estados Unidos meses
depois do acidente.
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Havia um obstáculo a ser vencido: embora,
naquela mesma semana, Lepore e Paladino tivessem voado juntos no Legacy, isso
acontecera com o acompanhamento de instrutores. São José–Manaus–Fort Lauderdale
seria a estreia da dupla voando por conta própria.
Nas instalações da Embraer, engenheiros da
fábrica treinaram os americanos no uso do software do Legacy, programa esse que
foi instalado em um laptop a ser usado na viagem. O software incluía dados sobre
a rota, inclusive particularidades do aeroporto de Manaus, primeiro ponto de
escala do percurso, onde os pilotos e passageiros do X-Ray Lima pernoitariam e
onde haveria a liberação alfandegária do jato.
Já na quarta-feira, dia 27 de setembro, a
ExcelAire, após ver cumpridas algumas exigências que fizera de alteração no
radar meteorológico, reparos na válvula de descongelamento e retoques na pintura
do November Six Hundred X-Ray Lima, considerou o jato em condições de
recebimento. O voo de volta para os Estados Unidos foi antecipado de sábado, dia
30, para sexta-feira. A decolagem ocorreria logo em seguida à cerimônia de
entrega.
No dia da partida, Lepore e Paladino se
juntaram aos seus companheiros de voo: os executivos da ExcelAire Ralph Anthony
Michielli e David Rimmer; Henry Arthur Yandre, representante da Embraer na
Flórida; Daniel Bachmann, funcionário brasileiro da Embraer; e o jornalista
Joseph (Joe) Sharkey.
Bachmann iria só até Manaus, onde se
encarregaria do desembaraço aduaneiro do X-Ray Lima. Já Joe Sharkey, que morava
em Nova Jersey, era o passageiro mais ilustre – ele escrevia, para jornais e
revistas americanos, artigos sobre aviação executiva e empresas de táxi-aéreo,
sendo inclusive colaborador do New York Times, com uma coluna semanal – “On the
road” – no caderno de viagens. David Rimmer, da ExcelAire, lhe oferecera uma
carona no voo inaugural do Legacy, aceita prazerosamente por Sharkey.
Nessa viagem ao Brasil, o jornalista fazia
uma matéria para a revista Business Jet Traveler. Um comentário favorável de
Sharkey sobre o Legacy ou sobre a ExcelAire seria uma ótima propaganda gratuita
para as duas empresas.
De um detalhe Michielli e Rimmer, os sócios
da ExcelAire, faziam questão: o horário de decolagem não poderia ultrapassar as
14 horas. A última coisa que eles queriam era sobrevoar a região amazônica
durante a noite.
Às 13h15, os cinco passageiros se dirigiram
para a aeronave, que fora rebocada para o pátio de estacionamento do aeroporto e
abastecida. O comandante Lepore já estava a bordo, cuidando da checagem
rotineira pré-voo. Enquanto isso, o copiloto Jan Paladino permanecia na sala de
entrega, com um engenheiro da fábrica, familiarizando-se com os cálculos de peso
e balanceamento do Legacy, reunidos no software carregado no laptop de Paladino.
O plano de voo do N600XL já fora providenciado pela Embraer. Esta o terceirizara
para a Universal Weather & Aviation Inc., de Houston, no Texas, especializada em
serviços de apoio à aviação.
Além dos diferentes rumos da primeira perna
do voo, São José–Manaus, constavam do plano as altitudes de cruzeiro
correspondentes: 37 mil pés (nível 370) na aerovia UW2, de mão única, entre São
José dos Campos e Brasília; 36 mil pés (nível 360), na aerovia UZ6(mão dupla),
entre Brasília e um ponto virtual denominado Teres, a 480 quilômetros a noroeste
da capital federal; e 38 mil pés (nível 380), também na mão dupla da UZ6, entre
Teres e Manaus.
Tal como determinam as regras aeronáuticas
brasileiras, a partir de Brasília, ao tomar o rumo norte, em aerovia de mão
dupla, o November Six Hundred X-Ray Lima se manteria sempre em níveis pares.
Como do norte para o sul as aeronaves são obrigadas a voar em níveis ímpares,
essa regrinha simples impede uma colisão. Níveis 360, 380, 400 etc. para o
norte; 350, 370, 390… para o sul.
Na primeira chamada que o N600XL fez à
torre do aeroporto, esta lhe passou a indicação da pista em uso e o instruiu
sobre o taxiamento até a cabeceira. Os pilotos receberam também o código do
transponder, 4574, através do qual seriam identificados nas telas de radar de
solo, acompanhado da informação sobre a altitude do jato.
De posse do código, o Legacy, ainda parado
no pátio, foi liberado pelo controlador de São José dos Campos a voar no nível
370 (37 mil pés) “até o Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, em Manaus”. Na
verdade, o Cindacta 1,em Brasília ,havia autorizado o 370 (tal como dispunha o
plano de voo para a primeira perna da viagem), mas não havia dito que tal
altitude deveria ser mantida até Manaus.
Paladino não questionou a instrução, que,
no entanto, não obedecia ao plano elaborado pela Universal para a viagem.
Limitou-se a acusar seu recebimento:
– November Six Hundred X-Ray Lima,
liberado para o Eduardo Gomes, nível de voo três sete zero.
Após ter falado com o Legacy, o controlador
chamou Brasília. Usou linguagem coloquial e agiu como se o pedido de manutenção
da mesma altitude durante toda a rota tivesse partido do N600XL.
– Oi, Brasília, o November Meia Zero
Zero X-Ray Lima para Eduardo Gomes, São José–Eduardo Gomes, solicitando o nível
três sete zero.
Brasília não contestou.
O nível 370 não só contrariava o plano de
voo preestabelecido como também as normas de altitude nos sentidos sul–norte e
norte–sul. Felizmente, o Legacy era equipado com o sistema anticolisão TCAS, que
alertaria os pilotos na hipótese de tráfego em sentido contrário.
Enquanto taxiavam, o copiloto, respondendo
a uma indagação do controlador, informou que havia “seis almas a bordo” (six
souls on board). Mas logo corrigiu: “Sete almas”, ao se lembrar da presença do
jornalista e carona Joe Sharkey. Um minuto depois, o N600XL decolou para Manaus,
2,7 mil quilômetros a noroeste.
Quando atingiu 8 mil pés, o Legacy foi
autorizado a continuar a subida. Recebeu também instruções para contatar a
frequência do Centro de Controle de Área de Brasília, onde um operador observava
a movimentação do X-Ray Lima, representado pelo código 4574 em seu monitor de
radar. Na tela escura, um círculo rodeava o bloco de dados do Legacy, em aviação
conhecido como “alvo”, composto de algarismos e letras brancas. A existência do
círculo era sinal de que a aeronave emitia sinais secundários de radar.
Portanto, seu transponder funcionava perfeitamente.
Após passar pelo nível 200, e permanecer um
pouco no nível 310, aguardando a resolução de conflito de tráfego com outra
aeronave, o jato recebeu permissão para subir para 37 mil pés. No cockpit,
Lepore e Paladino, sem familiaridade com as regras do tráfego aéreo brasileiro,
entendiam, por causa da instrução inicial do controlador de São José dos Campos,
que o nível 370 deveria ser observado até o destino.
Sem que Brasília percebesse o erro, o
N600XL voava na contramão. Entretanto, isso não deveria se constituir em
problema grave, uma vez que o transponder do X-Ray Lima logo iria enviar um
sinal para as telas de radar do Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de
Tráfego Aéreo, o Cindacta 1, em Brasília, mostrando o alvo em nível incorreto.
E, mesmo que nenhum desses sistemas e regulamentos redundantes funcionasse, o
TCAS do Legacy cuidaria de indicar, aos pilotos, as manobras evasivas
necessárias para desviar o jatinho de um possível tráfego em sentido contrário.
Desde o momento em que nivelaram o X-Ray
Lima em 37 mil pés, Joe Lepore e Jan Paladino passaram a trabalhar em um laptop.
Os pilotos tinham dúvidas sobre a performance do Legacy durante o pouso e a
decolagem (esta, no dia seguinte) no Eduardo Gomes. Parte da pista do aeroporto
estava interditada por causa de obras.
Em Brasília, o controlador do setor 07 não
notou que o Legacy, sob sua responsabilidade, voava na contramão. No entanto,
isso era claramente indicado na tela de seu console. O bloco de dados do X-Ray
Lima mostrava: 370 (nível efetivo) = 360 (nível programado).
Exatamente às 19h02 Zulu (Z ou Zulu = hora
de Greenwich, equivalente a 15h02 em Brasília e 14h02 em Manaus), o círculo ao
redor do bloco de dados do Legacy desapareceu das telas do Cindacta 1,
significando que o transponder fora desligado.
Sem se dar conta da perda do sinal
secundário do avião, Brasília não chamou o Legacy pelo rádio. Enquanto isso,
Lepore e Paladino continuavam “brigando” com o laptop, que se alternava no colo
de um e de outro. Concentrados no problema da pista de Manaus, os dois não viram
uma pequena mensagem branca em cada uma das telas principais do painel: TCAS OFF
(TCAS desligado) era o que o aviso assinalava.
Sempre seguindo o eixo da aerovia UZ6, o
jato atingiu a posição Teres. Lá, segundo o plano original de voo, ele deveria
passar do nível 360 — no qual em momento algum voara — para o 380 (38 mil pés).
Bloquearia então a posição virtual Nabol e seguiria até Manaus, fim da primeira
etapa do voo de traslado.
Obedecendo à instrução inicial de São José
dos Campos, de onde haviam decolado duas horas antes, Lepore e Paladino se
mantinham em nível ímpar, o FL370, exclusivo do sentido norte–sul. Uma cópia do
plano de voo feito pela Universal Weather, por encomenda da Embraer e aprovado
pelo centro de Brasília antes da decolagem, permanecia disponível em um
escaninho entre os dois pilotos. Também à disposição deles estavam as cartas
aeronáuticas, nas quais eram especificados os níveis corretos de voo nos dois
sentidos verticais da via de mão dupla.
O Legacy persistia na contramão.
Em Nabol, terminava a área de vigilância do
Cindacta 1 (Brasília) e tinha início a do Cindacta 4 (Manaus), sendo esta
segunda a responsável pelo tráfego aéreo na região amazônica. Além de estar no
nível errado, o Legacy entrara numa zona de transição, crítica para as
transmissões de rádio, que muitos pilotos chamam de buraco negro. Nela, às vezes
os aviões não conseguem falar com os controladores, e vice-versa. Era justamente
o que acontecia com o copiloto Paladino, que tentava chamar os centros de terra:
–November Six Hundred X-Ray Lima,
November Six Hundred X-Ray Lima – Paladino repetia ao microfone.
Nada. Nenhuma resposta.
Havia 54 minutos, o transponder e, por
conseguinte, o dispositivo anticolisão TCAS permaneciam desligados, sem que os
controladores de tráfego aéreo e a dupla Lepore e Paladino percebessem. Então,
às 19h56m54 Zulu, quando o Legacy cruzava a selva, acima do território do
município mato-grossense de Peixoto de Azevedo, algo misterioso e apavorante
aconteceu.
Ouviu-se na cabine de comando um som seco
de impacto, captado pelos microfones CAM (Cockpit Area Microphones) e registrado
numa das caixas-pretas, o CVR (Cockpit Voice Recorder), gravador de vozes da
cabine de comando. O avião deu uma abrupta guinada para a esquerda.
Seguiram-se dois gemidos do comandante
Lepore, “Uh, oh”, a desconexão imediata do piloto automático e três
avisos estridentes (chimes) de alarme.
– What the hell was that? (Que diabos
foi isso?) – Lepore perguntou.
– Nós perdemos um dos winglets (dobra
para cima da ponta da asa) – respondeu o copiloto, assustado, mas não em
pânico.
– Did we? (Perdemos?) Where the fuck did
he come from? (De que porra de lugar ele veio?) – Joe Lepore percebeu que
haviam colidido com alguma coisa. – O.k., vamos descer, declarando uma
emergência.
Foi a vez de Paladino gemer:
– Uh.
Lepore falou ao microfone:
– Brasília, Rádio Brasília, Brasília,
November Six Hundred X-Ray Lima.
Paladino avisou o comandante que este
deveria usar a frequência de emergência.
– Vinte e um cinco (referia-se a 121,5
mega-hertz).
Lepore, que não se esquecera disso,
confirmou:
– Vinte e um cinco.
– Precisamos manter a velocidade baixa
– sugeriu o copiloto. E tentou minimizar o incidente:
– Nós não estamos com uma descompressão
explosiva – Paladino fez valer sua maior experiência em jatinhos da Embraer.
– Fuck it – o CVR registrou o
“comentário” do comandante. Mas logo sua voz ficou calma e clara quando ele
voltou a chamar Brasília.
– Brasília, Brasília, November Six Zero
Zero X-Ray Lima, emergência.
Sentado numa das poltronas da cabine de
passageiros, o vice-presidente executivo da ExcelAire, David Rimmer, sentira o
forte sacolejo, viu que a ponta da asa esquerda desaparecera e, por via das
dúvidas, levantou-se e foi até o cockpit informar os pilotos.
A pergunta-palavrão veio agora de Paladino:
– Where the fuck did he come from?
As lembranças do colunista Joe Sharkey
foram, dias depois, registradas em um artigo de jornal:
“Sem aviso, senti um terrível solavanco e
ouvi uma batida forte, seguidos de um silêncio assustador, a não ser pelo
zumbido dos motores. E então duas palavras das quais jamais me esquecerei:
‘Fomos atingidos’, disse Henry Yandle, um dos companheiros de viagem, de pé no
corredor próximo à cabine de comando do jato Embraer Legacy 600.”
Sharkey levantou a cortina plástica da
janela. Viu que o dia ainda estava claro, embora com o sol se avermelhando e já
próximo à linha do horizonte. Viu também o verde-escuro da floresta, se
estendendo até onde os olhos podiam distinguir. Na extremidade da asa, em lugar
do winglet, havia um rasgão indecente e irregular, com fiapos de fibra de
carbono tremulando ao vento.
Nenhum deles, nem passageiros nem
aviadores, sabia que o pior acontecera lá atrás. O leme e o estabilizador
esquerdos, no alto da cauda, também haviam sido danificados, comprometendo a
aerodinâmica e a dirigibilidade do avião.
Para compensar a assimetria provocada pelos
danos e avarias, os pilotos precisaram torcer o manche 45 graus para a direita.
Só assim evitaram que o Legacy girasse para o outro lado, sobre o próprio eixo,
movimento que poderia resultar num mergulho em parafuso. Com muito custo,
conseguiram dominar o animal indócil e desconhecido no qual o X-Ray Lima se
tornara.
O Legacy se encontrava a mais de mil
quilômetros de seu destino, Manaus. Tudo fazia crer que dificilmente a
alcançaria naquele estado crítico. A prioridade dos pilotos passou a ser a de
achar um aeroporto que lhes permitisse um pouso de emergência.
– Que porra nós atingimos? – ainda
perplexo com o incidente, Lepore perguntou a Paladino e a si próprio. Mas logo
voltou a pensar nos centros de auxílio de terra. Apertou, no manche, o botão do
microfone e transmitiu, às cegas, para qualquer um que pudesse ouvir:
– Brasília, Brasília, November Six
Hundred X-Ray Lima. Temos um problema estrutural. Mayday, mayday –
completou.
Se valendo das cartas aeronáuticas e do
plano da Universal, descobriram a Base Aérea do Cachimbo. A distância de onde se
encontravam até Cachimbo foi estimada em 180 quilômetros, pouco mais do que
vinte minutos de voo, mesmo tendo de reduzir a velocidade do jato para não
comprometer ainda mais sua estrutura.
Exatamente às 20h21m42 Zulu, após os 25
minutos mais excruciantes de suas vidas, Lepore e Paladino enxergaram ao longe,
na diagonal, a pista de Cachimbo. Avaliaram seu comprimento, receberam
autorização da torre e iniciaram os procedimentos de pouso, que incluíram uma
curva bem ampla, e pouco inclinada, de aproximação, para não forçar a asa
avariada. No cockpit, alguns alarmes soaram, lembrando-os das irregularidades
aerodinâmicas do X-Ray Lima.
Mesmo com a dobra da ponta da asa esquerda
arrancada, e sem parte da cauda (aleijão que os aviadores desconheciam), o
Legacy conseguiu pousar, tocando o solo a 200 quilômetros por hora. O
arredondamento (perda de sustentação que precede o toque) se deu com suavidade e
segurança, apesar de os americanos terem optado por não usar os flaps, com
receio de que estivessem com defeito. Os freios, entretanto, foram usados ao
máximo.
Quando o avião já estava quase parando,
Paladino virou-se para Lepore e limitou-se a dizer:
– We’re alive (Estamos vivos).
Assim que o Legacy parou completamente, bem
antes do final da pista pavimentada de Cachimbo, uma viatura de apoio da base
aérea veio e se posicionou à sua frente. Bastou aos pilotos Lepore e Paladino a
seguirem taxiando até o pátio de estacionamento, onde os motores do jato foram
desligados. Eram 20h33 Zulu, 15h33 no fuso horário do oeste do Pará, onde fica a
base.
O Legacy conseguiu descer na base
militar do Cachimbo,
mesmo sem parte da asa e da cauda
(detalhe)
Quando desceram do avião, tripulantes e
passageiros levaram um enorme susto ao ver que, além do winglet esquerdo
decepado, um impacto na ponta da cauda danificara o conjunto estabilizador/profundor,
que perdera algumas de suas superfícies móveis.
Minutos após o pouso do X-Ray Lima,
Cachimbo recebeu um telefonema de Manaus. O comandante do Cindacta 4 queria
falar com o piloto do Legacy. Lepore, que se encontrava num dos prédios da base,
foi posto na linha. Um gravador registrou a conversa.
O oficial, após se identificar, explicou,
em inglês, que estava coletando informações para descobrir o que havia ocorrido.
Indagou sobre a localização do Legacy na hora do impacto.
– Mais ou menos a 100 milhas de Cachimbo
— esclareceu Lepore.
– Em que nível você estava? – quis
saber o comandante do Cindacta.
– Três sete zero – respondeu o
comandante.
– Nivelado a três sete zero? – o
oficial quis ter certeza.
– Nivelado a três sete zero – Joe
Lepore confirmou.
– The TCAS System was turned on? (O TCAS
estava ligado?) – o militar passou ao próximo item de seu interrogatório.
– Não – disse Lepore.
– Não? – Manaus quis ouvir de novo.
– No, it wasn’t (Não, não estava) –
a resposta de Lepore foi clara.
– Sem TCAS – o oficial comandante
conduzia com habilidade suas perguntas, de modo que tudo ficasse registrado.
– The TCAS was off. (O TCAS estava
desligado.) – Lepore voltou a confirmar, mas logo em seguida mudou sua versão. –
The TCAS was on. (O TCAS estava ligado.)
O comandante militar não pôs em xeque a
contradição.
– O.k. – aceitou.
E prosseguiu perguntando:
– Mas não houve nenhum sinal (de alerta
de colisão), certo?
– Não, nós não recebemos nenhuma
advertência [do TCAS] – Lepore concordou.
– O.k.! TCAS for sure was turned on,
o.k.? (O.k.! Com certeza o TCAS estava ligado, o.k.?) – o oficial em comando
do Cindacta 4 era insistente.
– O.k. – confirmou o comandante.
Manaus quis saber se o N600XL já passara da
área de atuação do Centro de Controle de Área Brasília para a do centro de
controle amazônico na hora do incidente e quais as frequências de rádio usadas
pelos pilotos. Lepore deu as informações e relatou suas dificuldades de
comunicação com os controles de terra, que não haviam respondido a suas
chamadas.
Após a ligação telefônica entre Cachimbo e
Manaus, Lepore, Paladino e seus cinco passageiros foram levados ao alojamento de
oficiais da base, onde lhes serviram cerveja gelada.
Por volta das sete e meia da noite, o
oficial em comando da base aérea de Cachimbo informou ao grupo que um Boeing 737
comercial, com mais de 150 pessoas a bordo, desaparecera no mesmo local, na
mesma hora e no mesmo nível de voo em que eles haviam sido atingidos.
O Gol 1907 decolou às 13h35 (hora de
Manaus), tendo a bordo 148 passageiros(dos quais 144 brasileiros, um francês, um
alemão, um português e um americano) e seis tripulantes. O destino final do voo
era o Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro, com escala em
Brasília, onde a tripulação seria trocada.
Durante a subida até 20 mil pés, o
comandante Décio Chaves Júnior e o copiloto Thiago Jordão observaram, em suas
atitudes e conversas, as condições de sterile cockpit, conforme é praxe nas
companhias aéreas mais exigentes. Isso significa obedecer a regras rígidas de se
concentrar nos procedimentos de pilotagem, sem contar piadas, sem falar de
futebol ou mal do patrão. O mesmo acontece nas descidas para aproximação e
pouso, abaixo do mesmo nível 200.
O avião de prefixo Golf Tango Delta
ultrapassou os 20 mil e continuou subindo. Quando chegou ao nível 370, o Boeing
foi estabilizado, iniciando o voo de cruzeiro.
Como estavam bem acima da área fixada para
o padrão severo do sterile cockpit, Chaves e Jordão podiam relaxar. Se alguma
aeronave viesse na direção do Boeing, o TCAS acusaria sua presença na tela e
passaria aos pilotos as instruções necessárias para uma manobra evasiva.
Sem nada para se preocupar, comandante e
copiloto examinavam fotos no visor de uma câmera digital. Elas haviam sido
tiradas nos Estados Unidos.
– A foto do carro você não me mostrou
— disse um deles. Sua voz ficou registrada na caixa-preta.
– Essa eu já te mostro – respondeu o
companheiro.
– Essa foto aí é da bicicleta?
– Isso.
Nesse instante, às 19h56m54 Zulu, ouviu-se
na cabine de comando uma pancada e sentiu-se um tranco forte. O nariz do Boeing
guinou violentamente para a esquerda e uma sequência infernal de alarmes começou
a soar.
Quando o Gol 1907 sofreu o impacto com algo
que seus pilotos não viram, e muito menos puderam identificar, a aeronave voava
a 460 nós (850 quilômetros por hora). Naquele instante, o Golf Tango Delta saía
do espaço aéreo do centro amazônico e entrava no do Setor 6 do Cindacta 1, de
Brasília.
Enquanto uma profusão de alarmes disparava
no cockpit, o Boeing perdeu sustentação. Sem um terço da asa esquerda, a
aerodinâmica do jato ficou totalmente comprometida. Ferido de morte, o Tango
Delta inclinou-se para o lado do toco de asa e começou a afundar, girando em
parafuso. Um forte ângulo de descida logo se transformou em mergulho vertical.
– O que aconteceu? – o CVR registrou
a pergunta agoniada do comandante.
– Ai, meu Deus do céu – limitou-se a
gemer o copiloto.
– Calma, calma – Décio Chaves fez
das tripas coração para manter o autocontrole, enquanto o som dos alarmes
aumentava de intensidade.
– Aiii! – um último grito de
desespero foi seguido, na captação dos microfones da caixa-preta, pelo ruído
forte de deslocamento de ar.
Jamais se saberá se algum passageiro ou
comissário chegou a perceber o que havia acontecido. O provável é que os giros
do parafuso, aliados ao mergulho do Boeing, tenham desnorteado completamente as
mais de 150 pessoas a bordo.
No momento da colisão a 37 mil pés, ninguém
morreu. Pois não houve um movimento inercial em direção às poltronas à frente de
cada um. A força do impacto se concentrou na parte inferior da asa atingida.
Enquanto o Tango Delta despencava, na
cabine de comando Décio Chaves e Thiago Jordão fizeram de tudo para amenizar a
queda. Os manetes foram reduzidos para idle [ponto morto], os trens de pouso,
baixados, assim como baixados os flaps. Os spoilers se abriram (apurou-se isso
mais tarde, pela leitura do gravador dos parâmetros de voo) nas partes que
restavam de asas. Nada disso impediu, nem teria como impedir, que o avião
amputado continuasse girando e caindo.
Finalmente, a estrutura do 737 não suportou
as forças que a trituravam. O Gol Uno Nove Zero Sete se desmanchou no ar. Seus
milhares de componentes, seus 148 passageiros e seis tripulantes continuaram
desabando até se espatifarem nas árvores da floresta tropical no município de
Peixoto de Azevedo, no Mato Grosso. Em poucos segundos, as copas das árvores,
tais como cortinas ao final de uma tragédia, se fecharam sobre os destroços e as
vítimas, encobrindo-os pudicamente.
A subida do November Six Hundred X-Ray Lima
até 37 mil pés foi acompanhada por um operador de radar do Cindacta 1. Embora
tivesse trocado diversas mensagens com o Legacy, em nenhum momento o
profissional de terra informou sobre a alteração de nível no bloqueio de
Brasília, tal como constava do plano de voo, cujos dados apareciam na tela do
controlador.
Quando, finalmente, o Legacy atingiu a
altitude para a qual fora autorizado por João Batista da Silva, o suboficial de
serviço na torre de São José dos Campos, o comandante Joe Lepore selecionou o
dispositivo altitude hold, que mantém a altitude no piloto automático da
aeronave. Isso aconteceu aos 26 minutos de voo e foi passado para Brasília pelo
copiloto Jan Paladino.
– November Six Hundred X-Ray Lima, level…
Flight level 370 – informou Paladino, embaralhando-se um pouco com a
fraseologia.
– Roger, squawk ident, radar
surveillance, radar contact – respondeu o controlador de Brasília, querendo
dizer com isso que o N600XL deveria se identificar, apertando um botão associado
ao transponder. Esse botão faria surgir, para a vigilância de radar do Cindacta
1, o símbolo eletrônico do Legacy.
Paladino não entendeu o inglês do operador.
– I’ve no idea what the hell he said
(Não faço a menor ideia de que diabo ele disse) – o copiloto comentou com
Lepore.
E a identificação não foi passada para
Brasília, o que só iria acontecer um pouco mais tarde.
Enquanto o Legacy e o Cindacta 1 tentavam
se entender, a 2,1 mil quilômetros a noroeste o Boeing 737-800 da Gol, prefixo
PR-GTD, decolava do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, em Manaus, com
destino a Brasília. O nível de voo solicitado por seu comandante, Chaves Júnior,
fora o 370, compatível com as normas da aerovia UZ6.
Quando interceptou o centro da nova
aerovia, a UZ6, o Legacy fez uma suave curva de 30 graus à esquerda e tomou o
rumo 336 graus, manobra executada pelo piloto automático. A mudança ficou
gravada no FDR (Flight Data Recorder, que registra os parâmetros de voo), uma
das duas caixas-pretas do avião. Mas a outra caixa-preta, o CVR (gravador de
vozes do cockpit), não captou nenhuma troca de observações entre Lepore e
Paladino a respeito da mudança de proa.
Ao longo de sua conversa, Lepore e Paladino
tampouco nada disseram sobre o combustível consumido até aquele momento, nem
conversaram sobre as estimativas de tempo de voo restante, tudo isso bê-á-bá da
rotina de qualquer aviador. Os dois continuaram presumindo que o nível 370 valia
até Manaus, sem conferir isso com a “carta de rota” – que mostrava claramente o
critério de níveis par e ímpar —, da qual havia um exemplar num escaninho do
cockpit.
Permaneciam concentrados no estudo do
software do laptop, calculando os dados da decolagem do dia seguinte em Manaus.
Essa indiferença em relação ao que realmente importava no momento, não
acompanhando o desenrolar da navegação, revelou deficiência de airmanship por
parte deles.
Airmanship é o correspondente aéreo ao
termo em inglês seamanship, usado há séculos pelos navegantes, nome que se dá à
arte de se conduzir um navio de modo seguro e vigilante, obedecendo às leis
marítimas e de acordo com as condições do mar e dos ventos. Airmanship e
seamanship são uma mistura de ciência, disciplina, experiência e dom.
Se, nos ares, pouca ou nenhuma atenção se
deu à proa e à altitude do Legacy, o mesmo se pode dizer de terra. O sargento
Jomarcelo Fernandes dos Santos, responsável pelo voo do jato, não era o que se
poderia chamar de profissional exemplar. Segundo a Aeronáutica, em seu relatório
A-022/Cenipa/2008, ele sentia dificuldades quando o volume de tráfego aéreo
aumentava. Ainda de acordo com o mesmo relatório, a fluência do sargento em
inglês era “não satisfatória”.
Naquela tarde de sexta-feira, Jomarcelo se
concentrava principalmente em uma aeronave da FAB, também sob sua
responsabilidade, em missão de prospecção de imagens radar a nordeste de
Brasília. Talvez por isso o sargento não tenha dado importância ao fato de que o
Legacy se mantinha no nível 370. Como recebera o avião antes do local designado
para isso, Jomarcelo pode ter se confundido e achado que já confirmara, com o
piloto, a diferença de altitude das etapas correspondentes às aerovias UW2e UZ6.
Às 19h01 Zulu, o círculo ao redor da
etiqueta do November Six Hundred X-Ray Lima subitamente desapareceu da tela do
sargento. No item “altitude” do bloco de dados, o sinal “igual” foi substituído
pela letra z, significando que, a partir daquele momento, a altitude exibida era
apenas uma estimativa e não um dado preciso.
Jomarcelo não notou as alterações. Ou, se
notou, nada fez para alertar os pilotos do Legacy. Simultaneamente, 65
quilômetros a noroeste, no painel do X-Ray Lima surgiu a mensagem TCAS OFF.
A ausência do círculo e o Z em lugar do
“igual” na tela de Jomarcelo dos Santos, assim como os dizeres TCAS OFF à frente
de Lepore e Paladino, eram sinais inequívocos de que o transponder do Legacy
fora desligado. O Cindacta agora recebia sinais primários de radar, sem a menor
precisão no quesito “altitude”. Como, tanto em terra como no ar, ninguém deu
mostras de perceber a anormalidade, Brasília não chamou o Legacy e o Legacy não
chamou Brasília.
Quando terminou o turno do sargento
Jomarcelo, assumiu em seu lugar o controlador Lucivando Tibúrcio de Alencar,
também sargento. Ao passar o serviço, Jomarcelo nada disse a Lucivando sobre o
fato de que um dos voos sob sua responsabilidade, o do November Six Hundred
X-Ray Lima, não emitia sinais secundários de radar, ou seja, sinais de
transponder.
Já em seu nível de cruzeiro, 37 mil pés, o
Boeing 737-800 da Gol sobrevoava a região de floresta cerrada no sul do estado
do Amazonas, entre os rios Abacaxis e Maués-Açu, afluentes do Madeira.
Quando o transponder do Legacy foi
desligado, seu sinal secundário de radar, com informações precisas sobre os
dados do voo, inclusive e principalmente sua altitude exata, deixou de ser
enviado não só para os centros de controle de terra como também para as
aeronaves que voavam nas proximidades. O Legacy tornou-se um espectro difuso na
vastidão do espaço aéreo.
O copiloto Paladino permanecia trabalhando
no laptop quando o transponder saiu do ar, e Lepore pilotava o avião nesse
momento. Onze minutos já haviam se passado desde que o Legacy se comunicara pela
última vez com os controles de terra.
Paladino continuava preocupado com a
decolagem em Manaus.
– Estou estimando um vento de frente de
5 nós – explicou ele ao comandante, sempre de olho na tela do laptop em seu
colo.
– Acho que vai dar para usar tanque
cheio – respondeu Lepore.
Às 19h01 Zulu, Joe Lepore,
inadvertidamente, ao manusear sua RMU (Radio Management Unit), dispositivo de
operações de rádio e comunicações, apertara o quarto botão da esquerda (de cima
para baixo), por duas vezes num intervalo de vinte segundos, rompendo as defesas
do aparelho contra um comando acidental. Com o duplo toque, o transponder saíra
da posição correta, TA/RA (Traffic Advisory/ Resolution Advisory – modo de
informação de tráfego/resolução de conflito de tráfego), para o módulo stand-by
(espera).
Imediatamente, o aparelho deixou de
transmitir sinais de radar para o exterior, refletindo apenas os que recebia.
Nem Lepore nem Paladino notaram as mensagens TCAS OFF e stand-by, inertes, em
branco pálido, sem piscar, em suas respectivas telas. Para piorar, nenhum alarme
soou no cockpit, alertando os pilotos americanos de que o avião agora voava às
cegas, sem detectar eventuais tráficos em rota de colisão.
À primeira vista, poderia se afirmar que
dois aviões voando em sentido contrário, pela mesma aerovia, e na mesma
altitude, têm tudo para se chocar de frente. Acontece que a UZ6, percorrida pelo
Gol 1907 e pelo N600XL, tem 80 quilômetros de largura. O normal seria os dois
jatos se cruzarem sem que os pilotos do Legacy e do Boeing, mesmo que estivessem
olhando para fora, vissem a passagem um do outro.
Isso se não fosse a incrível precisão dos
instrumentos modernos de navegação aérea. A altitude de voo tanto do Boeing como
do Legacy era de exatos 37 mil pés. Os dois percorriam o eixo mais do que
acurado da aerovia, sem nenhum desvio horizontal.
Se, por inspiração do demônio, os
comandantes Chaves Júnior e Lepore e seus copilotos tivessem planejado e
calibrado em seus instrumentos de bordo para aquele roçar de asas, não teriam
conseguido. Segundo descrição da revista Vanity Fair, foi como se dois índios,
um em cada extremidade de uma aldeia, e sem saber o que o outro estava fazendo,
lançassem flechas para cima e elas se tocassem levemente no ar.
Para sorte dos sete ocupantes do Legacy, um
ligeiro desvio, quem sabe provocado por uma quase imperceptível turbulência que
logo o piloto automático iria corrigir, fez com que os dois aviões não se
chocassem exatamente de frente, nariz contra nariz. O winglet da ponta da asa
esquerda do Legacy triscou na asa do Boeing, decepando-a em parte. O enorme jato
comercial caiu e o jatinho executivo, mesmo ferido, seguiu em frente.
De nada serve a precisão dos instrumentos
de bordo se eles não estão ligados. E isso foi o que aconteceu com o transponder
do Legacy, posto inadvertidamente em stand-by por um dos pilotos, logo após o
jato cruzar a vertical de Brasília. Sem transponder, o X-Ray Lima ficou sem TCAS.
Este, por estar desativado, não pôde “conversar” com o TCAS do Gol Uno Nove Zero
Sete.
Não fosse o desmazelo a bordo do Legacy, os
dois TCAS, após trocar informações, decidiriam que uma das aeronaves iria subir
e a outra, descer. Um alarme soaria em cada cockpit, seguido do surgimento de
uma área verde no indicador de velocidade vertical (climb) de cada um dos dois
jatos. Se a área verde ficasse na parte de cima do visor do instrumento, o avião
deveria subir. Se na parte de baixo, descer. E sempre divergente do TCAS da
outra aeronave. “Eu desço e você sobe”, ou vice-versa, é a regra.
A inoperância do transponder do N600XL
também impediu que os radares dos centros amazônico e de Brasília – o Legacy e o
Boeing trocavam de área naquele momento – percebessem que os dois voavam um de
encontro ao outro.
As aeronaves colidiram na velocidade somada
de 1,6 mil quilômetros por hora. Cada uma tinha a outra ligeiramente à sua
esquerda. O plano da asa do Boeing estava pouco menos de 1 metro acima do da asa
do Legacy. Nenhum dos quatro pilotos percebeu a aproximação do outro avião. Não
houve tentativas de manobras de escape.
Além do winglet esquerdo, as pontas do
mesmo lado do estabilizador e do profundor do Legacy também atingiram o Golf
Tango Delta – o winglet no meio da asa do Boeing e o conjunto profundor/estabilizador
na ponta do winglet esquerdo do Gol 1907. Foi, em suma, não mais do que um
esbarrão, no qual o avião grande levou a pior, primeiro despencando em parafuso,
depois se desintegrando no ar, caindo em mil pedaços na floresta lá embaixo. A
queda do Gol Uno Nove Zero Sete durou 63 segundos, durante os quais diversos
alarmes soaram no cockpit e uma voz robótica, metálica, desprovida de emoção,
avisou aos pilotos: “Bank angle” (algo como “cuidado com a inclinação”).
Em Brasília e Manaus, os controladores dos
Cindacta 1 e 4, apreensivos, viram o bloco de dados emitido pelo transponder do
Gol 1907 sumir de suas telas. Pouco depois, surgiram, bem nítidos, os sinais do
transponder do November Six Hundred X-Ray Lima.
No Cindacta 4, em Manaus, o controlador
Francisco Roberto Agostinho Freire aguardava a chamada do Legacy, que agora
voava no espaço aéreo sob a jurisdição do centro amazônico. Era preciso
coordenar o voo do jatinho em seu percurso final até o Aeroporto Eduardo Gomes.
Freire supunha, e não tinha razões para
pensar diferente, que o X-Ray Lima voava no nível 360 (36 mil pés). Essa
altitude não só era prevista no plano de voo do Legacy, como fora confirmada
pelo Cindacta 1.
Embora o Gol 1907, voando em sentido
contrário ao do Legacy, estivesse saindo da área de Manaus para a de Brasília,
Freire continuava visualizando, com nitidez, em sua tela, o bloco de dados
emitido pelo transponder do Boeing.
Às 19h57m10 Zulu (14h57m10, hora de
Manaus), Freire podia ver que o 1907 se deslocava para o sul em uma velocidade
horizontal regular de voo de cruzeiro de um Boeing 737-800: 460 nós (850
quilômetros por hora). Mas dez segundos depois, às 19h57m20, a velocidade caiu
vertiginosamente para 290 nós. Tal redução, num espaço de tempo tão curto, era
tecnicamente inviável, mesmo que os pilotos da aeronave tivessem desligado
abruptamente os motores.
A única explicação possível era a de que o
Gol, após ter colidido contra algo no céu, ou perdido uma asa, ou qualquer outra
parte vital de sua estrutura, em vez de prosseguir em seu voo retilíneo,
estivesse se projetando em direção ao solo. Isso ficou bem claro quando, passado
mais meio minuto, o transponder do Boeing informou que a velocidade (horizontal,
frise-se) caíra para apenas 20 nós (37 quilômetros por hora).
Os dados exibidos na tela do Cindacta 4
mostravam nitidamente que o Gol Uno Nove Zero Sete estava caindo. Mas, com a
tecnicidade burra e fria das máquinas, o transponder simplesmente expunha os 20
nós. Era o que a tela de radar mostrava para Freire.
Quando o Golf Tango Delta, mergulhando em
direção à floresta, rompeu a barreira do som, sua estrutura se desintegrou.
Segundos depois, para profunda inquietude de Freire, o Gol 1907 sumiu da tela à
sua frente. A angústia do controlador de Manaus era compartilhada por seus
colegas de Brasília.
– Não há nenhum Gol! Não há nenhum Gol!
O Gol desapareceu! – O desespero dos controladores do Cindacta 1 ficou
registrado nas fitas de gravação do centro.
Assim que, no cockpit do Legacy, os pilotos
sentiram o solavanco, e perceberam que o winglet da asa esquerda fora decepado,
iniciou-se uma inversão na hierarquia de comando.
– What the hell was that? (Que diabos
foi isso?) – Lepore pareceu perguntar mais a si mesmo do que a Paladino.
Este imediatamente procurou acalmar o comandante:
– All right, just fly the airplane, dude
(Tudo bem, simplesmente voe o avião, cara).
E repetiu:
– Just fly the airplane.
– Felizmente não houve uma descompressão
explosiva – continuou Paladino, ao perceber que o sistema de pressurização
do jato continuava funcionando normalmente. Lembrou isso ao comandante.
Pouco depois, sentindo que Lepore estava
visivelmente abalado, e não raciocinava com a lucidez que a situação exigia,
Paladino tentou, com tato, assumir a responsabilidade de conduzir o avião.
– Do you wanna fly, dude? Do you want me
to fly it? (Você quer pilotar, cara? Ou quer que eu pilote?)
Lepore não disse que sim nem que não. Mudou
de assunto.
– What? We got fucking hit? (O quê? Nós
fomos atingidos?) – perguntou o comandante.
– I don’t know, dude, just let me… let
me fly it (Eu não sei, cara, deixe-me… deixe-me pilotar) – Paladino agora
tinha certeza de que o comando teria de ser dele.
Lepore mostrou-se aliviado.
– You got it? (Você o tem [nas mãos]?)
– Yeah. I can fly. Just keep an eye out
for traffic (Sim. Eu posso voá-lo. Fique de olho no tráfego).
O November Six Hundred X-Ray Lima tinha um
novo comandante, de fato. Paladino não perdeu tempo e deu a primeira ordem:
– O.k., declare uma emergência.
– Em que frequência, vinte e um cinco?
– Lepore se submeteu mansamente. Por vinte e um cinco, ele se referia à
frequência de emergência, 121.5 mega-hertz.
– Sim, vinte e um cinco – confirmou
Paladino. – Seja lá o que tenha acontecido, temos de descer – concluiu,
sentindo no manche e nos pedais que o avião estava seriamente ferido e não
respondia prontamente aos comandos.
Foi então que Paladino percebeu, na parte
superior esquerda de uma tela do painel à sua frente, a mensagem em branco TCAS
OFF, aviso esse que estava ali havia 57 minutos, sem que nenhum dos dois pilotos
tivesse notado.
Paladino respirou tão profundamente que o
som do ar sendo aspirado e exalado de seus pulmões ficou registrado no CVR.
– Dude, you have the TCAS on? (Cara, o
TCAS estava ligado?) – ele perguntou a Lepore.
– Yes, the TCAS is off (Sim, estava
desligado) – Lepore, ainda com a mente embotada, confirmou e desmentiu na
mesma frase.
– Vamos corrigir isso agora – disse
Paladino, ao mesmo tempo que religava o transponder (e, por conseguinte, o TCAS).
Nas telas de radar dos Cindactas 1 e 4
(Brasília e Manaus) voltaram a aparecer, como que por encanto, os dados emitidos
pelo Legacy. Eram 20h01m57 Zulu, 16h01 em Brasília e 15h01 em Manaus e no norte
do estado do Mato Grosso, onde o Gol Uno Nove Zero Sete acabara de se espatifar
na floresta.
Sharkey: "Ele foi uma das
sete pessoas em um jato executivo que sobreviveu a uma colisão no ar com
um 737 sobre a Amazônia", descreve o próprio jornalista em seu blog. |
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Apesar da angústia que sofreu entre o
instante da colisão e o pouso em Cachimbo, o desastre do voo 1907 revelou-se um
bom negócio para Joe Sharkey, que, da noite para o dia, tornou-se uma pessoa
conhecida nos Estados Unidos, frequentando inclusive talk shows de grande
audiência.
Ao contrário de seus seis companheiros de
voo (os dois pilotos, os dois executivos da ExcelAire e os dois da Embraer),
que, talvez em respeito aos 154 mortos da outra aeronave, se mantiveram
reservados, Sharkey tirou conclusões apressadas sobre o desastre, inclusive
enaltecendo o profissionalismo de Joe Lepore e Jan Paladino.
Numa matéria com chamada na primeira página
do New York Times, intitulada “Colidindo com a morte a 37 mil pés e
sobrevivendo”, Sharkey, entre outras coisas, escreveu: “Eles [Lepore e Paladino]
pareciam soldados de infantaria trabalhando juntos numa enrascada, tal como
haviam sido treinados.”
Após uma passagem por Cuiabá, onde foram
interrogados “por um enérgico comandante da polícia”(segundo Joe Sharkey), os
sete ocupantes do Legacy foram transferidos para o Rio.
Sharkey viajou logo para Nova York. Lepore
e Paladino foram impedidos de sair do Brasil a pedido do Ministério Público.
Ficaram hospedados, com suas mulheres, que vieram dos Estados Unidos para
encontrá-los, em um hotel da avenida Atlântica, na praia de Copacabana, no Rio.
Após seus depoimentos terem sido colhidos na polícia, na Justiça e no inquérito
aeronáutico, Lepore e Paladino foram liberados para regressar aos Estados
Unidos, coisa que fizeram no mesmo dia.
Na época em que Lepore e Paladino estavam
no Rio, o agora requisitado Sharkey, numa entrevista ao programa Today Show, da
rede de televisão americana NBC, transmitida em 5 de outubro, disse que os
pilotos do Legacy corriam riscos (não disse de que tipo) no Brasil.
Enquanto Sharkey se pavoneava nos Estados
Unidos, equipes do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes, o Cenipa,
acompanhadas de representantes da Embraer, da ExcelAire, da Honeywell
(fabricante das aviônicas do Legacy), do Comitê Nacional de Segurança no
Transporte, o NTSB, e da Administração Federal de Aviação, a FAA, ambos
americanos, inspecionavam o equipamento do N600XL. Não precisaram de muito tempo
para verificar o perfeito funcionamento do transponder e do sistema anticolisão
TCAS. Os dispositivos não haviam falhado, e sim sido desligados durante o voo
São José dos Campos–Manaus.
Militares com a caixa-preta do
Boeing 737
A leitura do conteúdo das duas
caixas-pretas do X-Ray Lima foi feita por uma empresa especializada do Canadá.
Foram então reproduzidos todos os diálogos travados no cockpit, assim como os
procedimentos de pilotagem adotados por Lepore e Paladino. Com isso, tudo que se
passou a bordo tornou-se um livro aberto.
Se Lepore e Paladino tiveram grande parcela
de culpa no desastre do Gol 1907, a responsabilidade dos controladores de voo
brasileiros não foi menor. Em seu laudo, um dos apêndices do relatório do
Cenipa, o NTSB americano salientou, adequadamente, que Lepore e Paladino
tentaram, sem sucesso, entrar em contato com o Cindacta 1 por pelo menos quinze
vezes na meia hora que antecedeu à colisão.
Os operadores do Centro de Controle Aéreo
de Brasília simplesmente não selecionaram em seus equipamentos as frequências
123,3 e 133,05 mega-hertz, previstas nas cartas aeronáuticas para aquele setor e
usadas pelos pilotos do Legacy. Se a seleção tivesse sido feita no console,
conforme ditavam as normas, o nível errado de voo e o desligamento do
transponder teriam sido detectados e a colisão não ocorreria.
Entre os erros graves cometidos pelo
Cindacta 1, um dos principais foi o de não ter chamado o Legacy assim que os
sinais do transponder desapareceram das telas de radar. Isso ocorreu às 19h02
Zulu, ou seja, 54 minutos antes do choque com o Boeing da Gol.
Outra causa contribuinte do acidente foi a
instrução dada, pela torre de São José dos Campos, para que o Legacy seguisse
até o Aeroporto Internacional de Manaus no nível de voo 370, o que significava
voar a maior parte do percurso na contramão. Embora se deva supor que nenhum
piloto, em pleno juízo, vá considerar como última palavra uma autorização de
nível de cruzeiro para uma distância (2,7 mil quilômetros) e um tempo de voo
(três horas e 34 minutos) tão grandes, essa permissão descuidada e errada foi
usada na defesa de Lepore e Paladino.
O inglês deficiente dos controladores de
voo, aliado à apatia dos pilotos americanos em lidar com a fraseologia muitas
vezes incompreensível dos operadores brasileiros, fez com que ambos os lados
procurassem se comunicar o mínimo possível. Inúmeras oportunidades para a
correção do nível de voo e para o restabelecimento das emissões do transponder
foram perdidas por causa desse descaso.
Para Lepore e Paladino, faltou airmanship.
Para os controladores, entre diversas outras coisas, um melhor treinamento em
inglês. Só como exemplo, a última avaliação dos operadores de São José dos
Campos nesse quesito havia sido feita em 2003. Nela, cinco dos profissionais
obtiveram resultado “não satisfatório”. Mas nenhum deles foi afastado do
serviço. Continuaram se “comunicando” com pilotos estrangeiros. O mesmo
aconteceu com o pessoal do Cindacta 1. Segundo a própria Aeronáutica, Jomarcelo
Fernandes dos Santos, o sargento que assumiu primeiramente o Legacy no console,
tem conhecimento limitado da língua inglesa.
Entre as causas do acidente, há que se
considerar também a liberação prematura, por parte da Embraer, da aeronave para
traslado, tendo em vista que Joe Lepore e Jan Paladino tinham poucas horas de
voo no equipamento Legacy. O mais prudente era que ambos fossem acompanhados,
entre São José dos Campos e Fort Lauderdale (ou, no mínimo, entre São José e
Manaus), por um piloto da própria Embraer.
Não foi preciso muito tempo, nem muito
estudo, para se apurarem as causas do desastre: imperícia e negligência dos
pilotos do jatinho, imperícia e negligência dos controladores de voo e afobação
do fabricante (Embraer) e do operador (ExcelAire) na hora de entregar e de
receber o avião. Esses ingredientes combinados foram responsáveis pela morte das
154 pessoas que viajavam no Boeing.
Gostaria de encerrar a narrativa deste
episódio mostrando o desfecho, na Justiça, dos processos, cíveis e criminais,
relativos às personagens e às instituições envolvidas no desastre. Só que as
idas e vindas do sistema judiciário brasileiro, com seus inumeráveis recursos e
instâncias, tornam impossível relatar o que aconteceu em definitivo, seja com os
pilotos do Legacy, seja com os controladores de voo, com a ExcelAire, com a
Embraer, com a Gol e com a Aeronáutica.
Em maio passado, por exemplo, os pilotos
americanos foram condenados a uma pena de quatro anos e quatro meses de prisão,
em regime semiaberto. O magistrado, porém, substituiu a pena pela prestação de
serviços comunitários em órgãos brasileiros nos Estados Unidos e pela proibição
do exercício da profissão. O controlador Jomarcelo dos Santos foi absolvido de
todas as acusações pelo juiz Murilo Mendes, sob a alegação de que, “pelas
notórias deficiências” da sua formação, “só se pode agradecer por ele não ter
errado com muito mais frequência”. O controlador Lucivando Tibúrcio de Alencar
foi condenado a três anos e quatro meses de prisão, por ter programado
equivocadamente as frequências de comunicação do centro de controle,o que
impossibilitou contato com o Legacy. Ainda há recurso em segunda instância em
todos os casos, o que significa que o desfecho do processo está distante.
Por Ivan Sant’Anna, autor, escritor carioca
e piloto amador, autor de livros extraordinários sobre acidentes aéreos cuja
leitura recomendo — "Caixa Preta" (Editora Objetiva, 2000); "Plano de ataque"
(Objetiva, 2006); "Perda total" (Objetiva, 2011). A reportagem, publicada na
edição de junho de 2011 da revista Piauí, é uma edição de trechos do livro
"Perda Total".
Edição de texto e imagem Jorge Tadeu da Silva
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Mapas do local do acidente
Mapa aéreo da região do
acidente, mostrando Brasília, a Base Aérea de Anápolis,
a aerovia UZ6, os fixos
Teres e Nabol e a Base Aérea do Cachimbo.
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