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ACIDENTES AÉREOS HISTÓRICOS

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ÍNDICE

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O VOO E O SEQUESTRO

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FICHA TÉCNICA

O CARAVELLE

O VOO ERRADO

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A TRIPULAÇÃO

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OS SEQUESTRADORES

VAR-PALMARES

AS NOTÍCIAS NOS

JORNAIS DA ÉPOCA

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O voo e o sequestro

 

Nos primeiros dias de 1970, ex-marido da presidente Dilma e militantes viraram notícia mundial.

 

Aos 24 anos, a professora Marília Guimarães era peça importante na Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, organização armada de extrema esquerda que lutava contra o regime militar naquele final dos anos 1960.

Dona de uma escola com 800 alunos no bairro Coelho Neto, no Rio de Janeiro, ela usava o estabelecimento para reuniões e copiava no mimeógrafo panfletos para o grupo. A situação se complicou muito quando militares invadiram a escola exigindo explicações sobre o equipamento, que dias antes tinha sido escondido na casa de um guerrilheiro, preso em Niterói, em fevereiro de 1969.

Sozinha, com dois meninos de três e dois anos para criar — o marido Fausto Machado Freire, também do movimento, estava preso por se envolver em assaltos —, ela corria o risco de ir para cadeia a qualquer momento. Marília abandonou tudo, fugiu com as crianças para Minas Gerais, onde nascera e tinha parentes, e a decisão da VPR foi de tirar os três do Brasil. Como? Sequestrando um avião no Uruguai, onde tinha aliados e apoio dos Tupamaros, grupo guerrilheiro local.

Mãe e filhos desembarcaram de ônibus em Porto Alegre, vindos de São Paulo, no começo de dezembro de 1969. Marília se hospedou no Hotel São Luiz, depois no Majestic.

— Via o Mario Quintana no café da manhã, mas não me sentia à vontade em falar com ele — recorda.

O destino dela seria decidido em encontros à beira do lago da Redenção, com André, o nome falso de Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, primeiro marido da presidente Dilma Rousseff, também integrante do grupo. Galeno era um dos coordenadores no RS da VAR-Palmares — resultado de uma fusão ocorrida meses antes, da VPR com a Colina (Comando de Libertação Nacional).

Das reuniões, também participava James Allen da Luz, o Andrada, guerrilheiro da ala vermelha, a mais radical da VAR-Palmares, que vivia refugiado no Uruguai e comandaria o sequestro. Era a largada da operação que em poucos dias desafiaria o regime militar.

Um Fusca na fuga de Porto Alegre

Em uma madrugada naquele dezembro de 1969, Marília, os dois meninos e Galeno se espremeram com bagagens no banco traseiro de um Fusca, partindo de Porto Alegre para Montevidéu. Sentado à frente, um casal de amigos entregou novos documentos. Na viagem, a professora seria Miriam. Na capital uruguaia, se instalaram em uma pousada.

Foram compradas passagens para o Brasil para Galeno, Marília, as crianças, James, e outros três guerrilheiros: Athos Magno Costa e Silva, Isolde Sommer, a Severina, e Luiz Alberto da Silva, o Conga — o único sem registro nos arquivos policiais e que se juntara ao grupo na última hora.

O voo escolhido era o 114, da Cruzeiro do Sul, com partida às 19h32min de 1º de janeiro de 1970. Como o plano foi programado para o meio de um feriadão, a data exata da operação acabou confundindo jornais da época, que chegaram a noticiar que a decolagem havia ocorrido na véspera.

Enquanto os guerrilheiros definiam detalhes da ação naquela manhã de quinta-feira, o piloto de avião Mário Amaral e o colega Hélio Borges curavam em Ipanema, no Rio, uma ressaca da noitada de Réveillon. Até que o telefone deles tocou. Um Caravelle da Cruzeiro que voltaria do Uruguai no começo da noite tinha estragado no aeroporto de Carrasco, e eles teriam de fazer uma viagem de emergência para cumprir a rota do voo 114.

— Estávamos de folga, fui dormir bêbado, lá pelas 4h (do dia 1º). Mas o cara da escala me ligou. Aí, reclamei: porra, e o cara do sobreaviso? — conta Borges.

— Tá doente — respondeu o interlocutor.

Estava abortado o feriadão de Ano-Novo de Amaral, Borges e outros cinco colegas.

— Voltava do enterro da minha sogra quando fui avisado. Fomos só com a roupa do corpo, sem mala, sem nada — lembra o comissário José Omar da Silveira Morais.

O Caravelle, prefixo PP-PDZ, decolou do Galeão às 15h com os sete tripulantes, chegando perto das 18h na capital uruguaia. No saguão do aeroporto de Carrasco, Marília se virara para segurar bolsas com roupas, fraldas, mamadeiras e cuidar dos filhos. Inquietos, os meninos corriam toda vez que uma porta abria em direção ao pátio dos aviões. Prestativo, um policial se apressou em entreter as crianças.

— Uma ironia, ajudando uma pessoa que sequestraria um avião — recorda Marília.

A ordem é ir para Cuba, mas, antes, é preciso parar em Buenos Aires

Embora não existisse detector de metais no aeroporto uruguaio de Carrasco, Marília embarcou apreensiva no Caravelle. Baixinha e magrinha — pesava apenas 42 quilos—, aparentava ser mais obesa. Sob o tubinho, moda naquela época, usava uma bermuda elástica que escondia seis revólveres.

Atrapalhada com bolsas, crianças e bagagens no corredor do avião, Marília aproveitou a confusão para ir ao banheiro, retirar as armas e entregar uma para cada colega. Considerando os sequestradores, eram 26 passageiros — 12 brasileiros e os demais uruguaios, argentinos, dois romenos e um norte-americano.

Os sequestradores se espalharam pelos 64 lugares do Caravelle, quase vazio. Marília, os filhos e Galeno ficaram no meio. James Allen da Luz, o líder, se acomodou na primeira fila. Isolde Sommer e outro sequestrador foram para o fundo.

Era noite de 1º de janeiro quando o Caravelle da Cruzeiro do Sul, prefixo PP-PDZ, partiu do Aeroporto de Montevidéu, no Uruguai, em direção ao Rio de Janeiro, com escalas em Porto Alegre e São Paulo.

A aeronave era comandada pelo piloto Mário Amaral, carioca, com 19.500 horas de voo e 23 anos na Cruzeiro do Sul, pelo copiloto Silvio Eduardo de Carvalho Fróis, 11.400 horas de voo e 12 anos de empresa e pelo 1º Oficial Hélio Batista Borges, engenheiro de voo, com 4.200 horas de voo. Os demais tripulantes eram as comissárias de bordo Nerli Baradel e Eliete Dias de Carvalho, e pelos comissários de bordo José Omar da Silveira Morais e Ogler Passos Soares.

Quatro minutos depois da decolagem, a aeronave ainda inclinada, Nerly Baradel, chefe dos comissários, saudava os passageiros com anúncios de praxe.

— Senhoras e senhores, este é o voo 114 com destino ao Brasil, com escalas em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro...

Alguém resmungou que o voo original não pararia em Porto Alegre, quando James sacou o revólver e gritou:

— Agora!

Empurrou Nerly e invadiu a cabina, que não ficava trancada. Lá estavam o comandante Mario Amaral, o copiloto Silvio Eduardo de Carvalho Fróes e o segundo oficial Hélio Borges.

— Estava meio sonado e apareceu aquele maluco com um revólver na minha cara, um Smith & Wesson, muito bonito, niquelado, engatilhado. Via as balas no tambor — diz Borges.

— Isto é um sequestro. Mude o rumo para Cuba.

James anunciou o sequestro, exigindo que a aeronave fosse para Cuba. O comandante tentou argumentar. Advertiu que o Caravelle só tinha combustível para duas horas e precisaria parar em Porto Alegre para abastecer.

O comandante Amaral e o oficial Hélio Borges tentaram convencer os piratas aéreos da impraticabilidade do voo até Havana, mas seus argumentos foram inúteis.

Os sequestradores deixaram claro que não aceitavam em hipótese alguma que o aparelho aterrissasse no Brasil, embora os pilotos tivessem advertido que surgiriam dificuldades de pouso na rota do Pacífico.

— Brasil, não — gritou James.

A alternativa era Buenos Aires. O piloto reprogramou os controles e avisou:

— Senhores passageiros, fiquem calmos, o avião está sendo sequestrado.

Ao ouvir o alerta, Sofia Ferber, 70 anos à época, desmaiou, caindo ao lado do marido José Ferber, 72 anos. O casal de poloneses naturalizado uruguaio viajava com a filha Sara, 39 anos, para o casamento do outro filho, em São Paulo. No fundo do avião, os comissários Eliete Dias de Carvalho e Ogier Passos Soares também já estavam dominados. Passos ofereceu aos sequestradores cigarros, fósforos, lanche, água, café, bebidas. Tudo estava ao dispor.

— A tensão era grande, e tentamos agradá-los. Sabe-se lá qual seria a reação. Estavam ali para ganhar ou perder — lembra ele.

Os militantes redigiram um manifesto contra a ditadura. Borges deveria descer para reabastecer a aeronave em Buenos Aires e entregar o documento às autoridades locais.

O pedido de pouso em Ezeiza exigia contato com a torre de controle, e os pilotos relataram o que ocorria no aparelho.

A aeronave seguiu então em direção a Argentina, realizando uma primeira escala às 19h59min em Buenos Aires para reabastecimento.

Com problemas cardíacos, José e Sofia Ferber foram os únicos a descer, separando o casal da filha Sara. O assunto logo chegou à imprensa.

— Avisaram ao mundo inteiro que eu estava no avião com duas crianças. Foi o que salvou as nossas vidas — comenta Marília.

O Caravelle foi abastecido, a contragosto das autoridades argentinas. Mandaram alinhar caminhões na pista para trancar a passagem, mas não conseguiram impedir a decolagem, que aconteceu às 21h37min, desta vez em direção ao norte do Chile.

O passageiro secreto

Já era 00h20 da madrugada de sexta-feira, 2 de janeiro de 1970, e o Caravelle se aproximava da pista do aeroporto Cerro Moreno, em Antofagasta, no norte chileno, para o segundo reabastecimento.

Apesar de os pilotos desconhecerem a rota — a Cruzeiro do Sul não voava para o Chile —, a viagem transcorreu sem sobressaltos. Preocupado com a onda de sequestros de aviões, o copiloto Sílvio Eduardo de Carvalho Froés já vinha pegando informações com colegas sobre o caminho para Cuba. E durante o reabastecimento em Buenos Aires, o segundo oficial Hélio Borges tinha ganho um mapa de navegação nos Andes de um profissional da Varig.

Em terra chilena, o clima era de serenidade. O governo socialista de Salvador Allende era simpático às causas dos guerrilheiros brasileiros. Além de combustível, Borges e o comissário José Omar da Silveira Morais puderam descer para pegar comida e jornais.

Mas, dentro do avião, uma passageira, Mary Nôvo (já falecida), explodia de raiva. Ela e o marido, o engenheiro civil Luiz Fernando Nôvo, voltavam para São Paulo depois de alguns dias de férias na Argentina e no Uruguai. E Mary não se conformava com a situação.

— Minha mulher colocou o dedo na cara de um deles e deu uma de mamãe. Disse: "Você é um desgosto para a tua mãe, ela nunca mais vai te ver" — recorda o engenheiro.

Surpresa maior com os passageiros ainda estava por vir: sentado bem à frente, Flávio Macedo Soares, 29 anos, dava início a uma "queima de arquivo". Com um faca de metal, cedida por uma comissária, rasgou um bolsa de lona, lacrada com uma tarja verde e amarela. A todo instante, ia ao banheiro e voltava. A movimentação chamou atenção.

— Perguntei ao Galeno: você acha que esse homem está com dor de barriga? E fomos ao banheiro. O vaso e outros compartimentos estavam todos entupidos de papéis. Não dava para ler. Penso que eram relatórios da Operação Condor. Ele levou o maior susto quando foi descoberto — lembra Marília Guimarães.

Soares, já falecido, era secretário do Ministério das Relações Exteriores. Sua missão: transportar a mala diplomática até o Rio de Janeiro — o meio mais seguro para remessa de documentos oficiais e secretos que não podiam ser despachados pelo correio.

Quando Brasília descobriu que Macedo estava entre os passageiros, o pânico se instalou no Itamaraty, mas em sigilo absoluto. Os temores eram: Soares estava ou não com a mala diplomática? Quem colocaria as mãos nos documentos sigilos, os sequestradores ou os comunistas cubanos? Nos céus dos Andes, Soares enfrentava uma turbulência pessoal

— O James achava que ele estava a serviço da CIA, que estava armado. Falou ao comandante que iria interrogá-lo e, caso reagisse, seria morto — diz Borges.

A tripulação se desesperou. O secretário do Itamaraty foi revistado e, por sorte, só portava o passaporte vermelho. Depois, com um revólver apontado para o peito, teria sido obrigado a escrever uma carta na qual admitia ter violado a mala diplomática. Em Havana, os documentos rasgados, parte deles sujos de fezes e urina, teriam sido entregues a autoridades locais, que, por sua vez, teriam devolvido os papéis ao secretário do Itamaraty. Ao final do sequestro, o governo brasileiro evitou falar sobre o episódio.

Às 00h52min, o PP-PDZ levantou voo em direção a Lima, no Peru.

27 horas de medo em Lima

Assim que o trem de pouso tocou o aeroporto Jorge Chávez, em Lima, às 3h10min, o Caravelle foi cercado por militares peruanos. A ordem do general Velasco Alvarado, presidente do Peru, era de negociar à exaustão uma rendição, "matando" os sequestradores no cansaço.

A ação dos brasileiros era manchete mundial naquele 2 de janeiro de 1970, e jornalistas, políticos e curiosos correram para o aeroporto.

O reabastecimento foi rápido, mas quando o comandante Mario Amaral tentou ligar as turbinas - sem as baterias apropriadas - os motores não entraram em funcionamento.

O Caravelle era um avião para voos curtos (até 4 mil quilômetros) e não era utilizado em rotas internacionais. Ir até Montevidéu era como um voo de cabotagem.

Como as empresas aérea peruanas não utilizavam Caravelle, o aeroporto de Lima não estava aparelhado para atender as particularidades do avião de fabricação francesa, que exige uma quantidade muito grande de energia para o arranque das turbinas.

O 2º Oficial Hélio Batista Borges - engenheiro de bordo - desceu para providenciar o reabastecimento, baterias, comida e outras coisas necessárias à partida para a próxima escala, prevista para o Panamá.

Enquanto eram providenciadas as baterias, os sequestradores falaram à imprensa numa entrevista coletiva sem nenhuma interferência das autoridades peruanas.

Inicialmente se identificaram como James Allen da Luz, Atos Magno Costa e Silva, Cláudio Galeno Magalhães Linhares, Isolde Sommer e Luis Alberto Silva (este piloto profissional).

Disseram pertencer a Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), que estavam armados com revólveres, punhais e granadas.

Informaram que o grupo era conhecido como "Comando João Domingues", em homenagem a um companheiro que - segundo eles - "como muitos outros morreu nas mãos das Forças Armadas brasileiras, transformadas em agentes policiais do imperialismo no Brasil".

Declararam que uma de suas missões era levar a Cuba duas crianças, de dois e três anos (esta uma menina), filhos de um subversivo então preso no Brasil. A mãe das crianças estava no avião, mas não havia sido identificada.

Num manifesto escrito, os sequestradores acrescentaram que as crianças não eram, portanto, como foi dito inicialmente, reféns: "não é costume da VAR-Palmares usar pessoas como reféns".

Marília, a guerrilheira que fugia para Cuba com os dois filhos — o principal motivo do sequestro do Caravelle—, lembra ter visto faixas de apoio a ela nas janelas do aeroporto. Mas, aos poucos, foram sumindo, enquanto se aproximavam carros militares de combate.

— Era uma praça de guerra. Colocaram uma metralhadora quase encostada na cabina. Queriam bloquear o avião de qualquer jeito. Soube, depois, da preocupação com aquela mala diplomática do Itamaraty, mas, na hora, não liguei um fato a outro — recorda Borges.

Logo que desceu, ele foi chamado para falar com autoridades peruanas, e voltou à aeronave como uma proposta: asilo político para Marília e os filhos. A contrapartida: liberar os reféns, que seriam transferidos para uma aeronave militar.

— Não aceitei. Invadiriam o avião com meus companheiros lá dentro — recorda Marília.

Além das dificuldades diplomáticas, a viagem até Cuba estava ameaçada pelo problema técnico. Não foi possível conseguir as baterias, e as tentativas de colocar em funcionamento as turbinas haviam esgotado os próprios acumuladores do Caravelle.

A companhia Avianca trouxe baterias da Colômbia. Eram velhas e não funcionaram. As horas avançavam, e os militantes, cada vez mais impacientes, ameaçavam matar reféns.

— Pedi baterias novas, pelo amor de Deus. Todo mundo puto da cara dentro do avião, nervoso, falando coisas horríveis. Depois de quase um dia de conversa, concordaram em comprar — lembra Borges.

A tensão ia aumentando no aeroporto de Lima. A LAN, empresa chilena que já tivera experiência semelhante com um de seus aviões sequestrados, ofereceu-se para trazer de Santiago a aparelhagem necessária à decolagem, mas quando seu avião chegou, as baterias não adiantaram nada.

Enquanto isso, repórteres e fotógrafos faziam plantão no aeroporto, e alguns sequestradores se exibiam na cabina do Caravelle.

Com um cartaz de Che Guevara nas mãos, Athos Magno Costa e Silva afirmava que iriam treinar com guerrilheiros cubanos e celebrar os 10 anos da ascensão de Fidel Castro e que, depois, "voltariam ao Brasil para a luta". 

Ao serem questionados por um jornalista sobre o que fariam se o avião não pudesse mesmo partir, o sequestrador Atos Magno respondeu: "Com uma arma na mão sempre se consegue tudo".

Isolde Sommer, a outra mulher do grupo, foi destaque na capa de jornais. Jovem, bonita, com um belo corpo, ela foi encarregada de vigiar a cabina de comando desde que o avião foi sequestrado até o pouso em Lima.

— Ela era uma jovem morena, linda, com as pernas maravilhosas. Vestia uma minissaia estampada, com um palmo de comprimento — lembra o comissário José Omar da Silveira Morais, hoje morador de Barbacena (MG).

Da janela, Isolde deixou cair uma carta e duas notas escritas em letra de imprensa. A carta e uma das notas foi recolhida por um oficial de polícia, depois de alguma luta com os jornalistas, que ficaram com a outro nota.

A polícia não mostrou os documentos, mas um funcionário do aeroporto informou que diziam ser o sequestro um ato de represália pela captura de um membro da organização terrorista Tupamaros, do Uruguai.

O 2º Oficial Hélio Borges também falou à imprensa e relatou que os sequestradores estavam armados com "grandes revólveres" e que mostravam um pacote dizendo que eram explosivos, sem que a tripulação tenha podido comprovar. Sob o forte calor, o engenheiro de voo disse que os tripulantes estavam bem, embora cansados.

No Rio de Janeiro, a Cruzeiro do Sul informava que outro avião - proveniente de Santiago - deveria chegar a Lima por volta da meia-noite, levando novos geradores para tentar dar partida às turbinas do Caravelle.

A tensão tomou conta do aeroporto de Lima quando policiais armados de metralhadoras cercaram o avião. A imprensa e os curiosos foram imediatamente afastados.

Os jornalista conseguiram ver dentro do avião um dos sequestradores - que antes fazia o V da vitória - andar de um lado para o outro com um embrulho que, segundo eles, continha explosivo.

Os assaltantes recusaram a proposta para colocar o avião no parque de trânsito, em vez de ficar na área de reabastecimento. Com a noite, a temperatura amenizou, mas no avião sem ar condicionado o calor ainda era forte.

A tensão suscitada pela possibilidade de violência aumentava e um dos sequestradores advertiu que, se fosse impossível levantar voo com o Caravelle, a Cruzeiro do Sul deveria enviar outro avião para apanhá-los e prosseguir viagem até Cuba.

A policia peruana, entretanto, estava pronta para responder com força se os sequestradores tentassem alguma manobra.

Após muitas horas de medo, às 5h59min do dia 03 de janeiro, o Caravelle PP-PDZ levantou voo de Lima. Foram 27 horas sob grande tensão em solo peruano.

O comandante Mário Amaral havia finalmente conseguido enfim acionar as turbinas do jato com o auxílio de baterias de terra trazidas de Santiago do Chile por um avião da Aerolíneas Peruanas e a assistência de um mecânico enviado especialmente pela LAN Chile.

A decolagem foi acompanhada por centena de curiosos, jornalistas e policiais armados, que estavam dispostos a responder pela força a qualquer violência dos sequestradores, caso o avião não pudesse mesmo levantar voo.

Pouco antes de partir, o comandante declarou que talvez outros cinco passageiros fossem cúmplices dos sequestradores identificados. Um deles permanecia sentado com um embrulho no colo, que poderia ser uma metralhadora.

No decorrer do voo houve discursos a bordo e distribuição de panfletos políticos.

No Panamá, plano de invasão assusta comissário

Nada poderia ser pior do que as tenebrosas 27 horas em Lima, mas a parada seguinte do voo, reservava momentos de tensão no Panamá, a última escala antes de Cuba.

Nem os tripulantes nem os sequestradores previram que o ambiente seria tão hostil. Sob forte domínio de Washington, o país estava recheado de militares americanos que controlavam a região do Canal do Panamá, com treinamento de guerrilha e tortura na selva.

A chegada, na manhã de 3 de janeiro de 1970, até que foi tranquila. O Caravelle chegou ao aeroporto de Tucumén, no Panamá, às 9h14min (hora de Brasília) e parou longe do saguão, e os únicos que se aproximaram foram dois funcionários da Shell, em um Jipe, para providenciar o abastecimento.

Como nos outros países, o segundo oficial Hélio Borges desceu com um cartão de crédito da Cruzeiro do Sul para comprar o combustível. Foi quando avistou um homem de terno e gravata, caminhando na direção do veículo. Era um representante da embaixada do Brasil, exigindo que todos desembarcassem.

— Falei que já tinham tentado isso no Peru. Mas voltei ao avião, e a resposta dos sequestradores foi: "Não tem papo, manda ele à merda".

Borges seguiu no Jipe para o hangar da Shell e foi abordado por outro homem falando português, acompanhado de militares e seis soldados panamenhos com fuzis a tiracolo. Era um coronel do Exército:

— Preciso da sua ajuda. Tenho ordens de parar este avião aqui. Como vai ser?

— Ele queria me dar uma pistola 45 para que eu atirasse no primeiro sequestrador que visse dentro do avião. Claro que disse não. Aí ele falou: "Então, vamos mandar comida envenenada ou colocar gás na tubulação de ar". Vai matar muita gente, eu disse — lembra Borges.

Outro oficial brasileiro, indignado, gritou:

— É por causa de um bunda mole como você, que estão sequestrando avião.

Enfurecido, Borges se virou de costas em direção ao galpão de combustíveis. O coronel o agarrou pelo braço e advertiu:

— Faça o que achar melhor, mas antes me diz o teu nome. Fique sabendo que, ao voltar ao Brasil, você vai ver o que é bom pra tosse.

O comissário José Omar da Silveira Morais desceu para buscar refeições e viu marines americanos atrás de árvores, com uma metralhadora com luneta e mira telescópica apontada para a cabine do Caravelle. Um militar teria tentado cooptá-lo, oferecendo uma arma.

— Eu deveria entrar atirando e eles, depois. Como não sabiam quem eram os sequestradores, seria um banho de sangue. Eu seria o primeiro a morrer. É claro que não aceitei — diz Silveira.

Suspeito de ter colaborado com os sequestradores, Silveira foi pressionado no Brasil. Acabou perdendo o emprego dois anos depois. Hoje, luta por indenização. Sempre negou relação com os militantes.

Além de combustível, a aeronave precisava de um lubrificante para turbinas. Funcionários reviraram armários da Shell, folhearam catálogos em busca de um similar, e nada. Para completar, o aeroporto de Tocumen não dispunha de fonte de energia para acionar os motores do Caravelle. Após cinco horas, as turbinas foram acionadas com baterias velhas.

Repetia-se, em escala menor, o drama de Lima: o avião, depois de reabastecido, não conseguia acionar as turbinas por falta de bateria de terra. A única apropriada estava fora de uso há 18 meses, desde que uma companhia venezuelana deixara de operar os últimos Caravelle no aeroporto de Tucumén.

Enquanto se tentava colocar o gerador em funcionamento, foram fornecidas aos ocupantes do avião 35 refeições e muitos refrigerantes. Sete camisas brancas limpas foram cedidas à tripulação.

Foi possível também, com baterias auxiliares, manter em funcionamento a aparelhagem de refrigeração do avião, o que poupou aos ocupantes enfrentar novamente o forte calor que haviam sofrido em Lima.

O avião estava cercado por soldados da Guarda Nacional, mas apenas o diretor da Aeronáutica Civil, Capitão Patrício Janson, pode aproximar-se quando o comandante Mário Amaral desceu do avião para supervisionar o reabastecimento.

Amaral aproveitou para conversar com o Capitão Janson e com o Embaixador brasileiro, Carlos Duarte da Rocha.

O piloto informou que Isolde Sommer permaneceu o tempo todo na cabine de comando ameaçando a tripulação, apontando para ele uma pistola. Disse, também, que os passageiros estavam bem, embora cansados, e que as duas crianças brincavam tranquilamente a bordo.

O diretor da Aeronáutica Civil informou à imprensa que havia conseguido jornais para os passageiros e que o avião encontrava-se isolado pois os sequestradores estavam “muito nervosos e cada vez mais impacientes”.

Independente de a situação ser delicada em relação ao avião da Cruzeiro do Sul, o aeroporto prosseguiu funcionando normalmente para outros voos.

Finalmente, depois de mais de cinco horas de esforços, os mecânicos conseguiram deixar a bateria de terra em condições de acionar as turbinas do Caravelle.

Às 14h31min, o avião levantou voo para a última etapa de sua forçada viagem a Cuba, que seria alcançada em pouco mais de duas horas de viagem.

Em Cuba, os papéis se invertem

Durante a viagem entre a Cidade do Panamá e Havana uma luz vermelha ficou o tempo todo piscando no painel da cabine do Caravelle. Quase sem lubrificante, uma das turbinas ameaçava ter uma pane a qualquer instante.

Às 17 horas (horário de Brasília) o PP-PDZ aterrissou no aeroporto José Martí, em Havana.

A recepção no aeroporto José Martí também estava a cargo de militares. Mas, desta vez, aliados dos sequestradores.

Um grupo de oficiais entrou na aeronave perguntando quem era a mulher com os dois filhos. Carlos Lamarca, um dos chefes do grupo guerrilheiro Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), tinha enviado carta para El Comandante Fidel Castro, pedindo uma atenção especial a Marília Guimarães.

— Cheguei que era um trapo em Havana, quase delirando. Passei a maior parte do tempo (dois dias) sem comer e sem beber com medo de envenenamento. Só molhava os lábios com o que tinha nas mamadeiras das crianças. O sequestro terminaria quando acabasse o leite e a água deles — garante Marília.

— Os sequestradores davam as refeições, aleatoriamente, para pessoas da tripulação e esperavam bastante tempo para comer — lembra o copiloto Sílvio Eduardo de Carvalho Fróes.

Ele, os colegas e os passageiros foram levados pelos militares cubanos em um micro-ônibus para uma sala, também isolada, com sanduíches e refrigerantes.

— Fizeram muitas perguntas, querendo saber qual a tendência política da gente — conta a chefe dos comissários, Nerly Baradel.

O comissário Ogier Passos Soares afirma que, além do interrogatório, ainda foram submetidos à sessão de fotos e coleta de impressões digitais.

— Fotos de frente e de lado, como bandido — lamenta ele.

A alegação era de que a tripulação estava ali clandestinamente, pois não tinha autorização legal para pousar em Cuba. Os sequestradores foram acomodados no Hotel Capri, e os reféns, no Havana Riviera, distantes poucas quadras. Por algum tipo de precaução, foram todos proibidos de sair.

Eles foram mantidos isolados pela polícia local dos outros hóspedes e de qualquer visitante ou jornalista.

Apesar da liberdade para tomar banho e descansar, a alta carga de estresse impedia os reféns de adormecer.

— Fiquei 60 horas acordado. E, depois que cheguei em casa, também custei a dormir. Em uma situação dessas, você perde a noção do sono, do frio, da fome — conta o copiloto Fróes.

O sequestro tinha acabado, mas a confusão envolvendo o Caravelle iria longe. Além dos problemas mecânicos a serem resolvidos (novamente a dificuldade no arranque das turbinas), a aeronave não poderia regressar ao Brasil sem o pagamento de taxas aeroportuárias cubanas — há relatos de que seriam de US$ 20 mil a US$ 50 mil.

Como os militares tinham cortado relações diplomáticas com Cuba em 1964 (reatadas só em 1986), o Brasil precisou pedir ajuda à embaixada da Suíça para desatar os nós.

Às 20h03min (hora de Brasília) do dia 6 de janeiro, o Caravelle decolou do aeroporto José Marti, em Havana em direção ao aeroporto Isla Verde, em San Juan, em Porto Rico, aterrissando às 22h25min, onde os passageiros jantaram e deram explicações ao FBI (a Polícia Federal americana).

Após 136 horas de muita apreensão e incertezas, o Caravelle PP-PDZ tocou, às 11h23min do dia 7 de janeiro, a escaldante pista do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.

Entre Havana e o Rio, houve escalas em San Juan (Porto Rico), Manaus e Brasília.

Assim que as turbinas pararam, um ônibus militar conduziu os sete tripulantes e nove passageiros para o interrogatório, durante o qual houve projeção de slides. Eles foram proibidos de contar a verdade sobre o sequestro. Às 13h45min, os tripulantes e os passageiros foram liberados. Três passageiros argentinos ficaram no Rio e os demais seguiram para São Paulo em outro Caravelle.

Terminava, assim, um dos mais longos e, com certeza, o mais dramático seqüestro da história da aviação brasileira.

 

Fonte: José Luís Costa (Zero Hora) / Jornal do Brasil / Folha de S.Paulo

 

Pesquisa e edição de texto: Jorge Tadeu da Silva

 


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Texto e edição de imagens por Jorge Tadeu da Silva


 

Fontes de pesquisa: Zero Hora / ASN / Wikipédia

Jornal do Brasil / Folha de S. Paulo / O Globo

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