Nos primeiros dias de
1970, ex-marido da presidente Dilma e militantes viraram notícia
mundial.
Aos
24 anos, a professora Marília Guimarães era peça importante na Vanguarda
Popular Revolucionária, a VPR, organização armada de extrema esquerda
que lutava contra o regime militar naquele final dos anos 1960.
Dona de uma escola com 800 alunos
no bairro Coelho Neto, no Rio de Janeiro, ela usava o estabelecimento
para reuniões e copiava no mimeógrafo panfletos para o grupo. A situação
se complicou muito quando militares invadiram a escola exigindo
explicações sobre o equipamento, que dias antes tinha sido escondido na
casa de um guerrilheiro, preso em Niterói, em fevereiro de 1969.
Sozinha, com dois meninos de três e
dois anos para criar — o marido Fausto Machado Freire, também do
movimento, estava preso por se envolver em assaltos —, ela corria o
risco de ir para cadeia a qualquer momento. Marília abandonou tudo,
fugiu com as crianças para Minas Gerais, onde nascera e tinha parentes,
e a decisão da VPR foi de tirar os três do Brasil. Como? Sequestrando um
avião no Uruguai, onde tinha aliados e apoio dos Tupamaros, grupo
guerrilheiro local.
Mãe e filhos desembarcaram de
ônibus em Porto Alegre, vindos de São Paulo, no começo de dezembro de
1969. Marília se hospedou no Hotel São Luiz, depois no Majestic.
— Via o Mario Quintana no café da
manhã, mas não me sentia à vontade em falar com ele — recorda.
O destino dela seria decidido em
encontros à beira do lago da Redenção, com André, o nome falso de
Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, primeiro marido da presidente
Dilma Rousseff, também integrante do grupo. Galeno era um dos
coordenadores no RS da VAR-Palmares — resultado de uma fusão ocorrida
meses antes, da VPR com a Colina (Comando de Libertação Nacional).
Das reuniões, também participava
James Allen da Luz, o Andrada, guerrilheiro da ala vermelha, a mais
radical da VAR-Palmares, que vivia refugiado no Uruguai e comandaria o
sequestro. Era a largada da operação que em poucos dias desafiaria o
regime militar.
Um Fusca na fuga de Porto Alegre
Em uma madrugada naquele dezembro
de 1969, Marília, os dois meninos e Galeno se espremeram com bagagens no
banco traseiro de um Fusca, partindo de Porto Alegre para Montevidéu.
Sentado à frente, um casal de amigos entregou novos documentos. Na
viagem, a professora seria Miriam. Na capital uruguaia, se instalaram em
uma pousada.
Foram compradas passagens para o
Brasil para Galeno, Marília, as crianças, James, e outros três
guerrilheiros: Athos Magno Costa e Silva, Isolde Sommer, a Severina, e
Luiz Alberto da Silva, o Conga — o único sem registro nos arquivos
policiais e que se juntara ao grupo na última hora.
O voo escolhido era
o 114, da Cruzeiro do Sul, com partida às 19h32min de 1º de janeiro de
1970. Como o plano foi programado para o meio de um feriadão, a data
exata da operação acabou confundindo jornais da época, que chegaram a
noticiar que a decolagem havia ocorrido na véspera.
Enquanto os guerrilheiros definiam
detalhes da ação naquela manhã de quinta-feira, o piloto de avião Mário
Amaral e o colega Hélio Borges curavam em Ipanema, no Rio, uma ressaca
da noitada de Réveillon. Até que o telefone deles tocou. Um Caravelle da
Cruzeiro que voltaria do Uruguai no começo da noite tinha estragado no
aeroporto de Carrasco, e eles teriam de fazer uma viagem de emergência
para cumprir a rota do voo 114.
— Estávamos de folga, fui dormir
bêbado, lá pelas 4h (do dia 1º). Mas o cara da escala me ligou. Aí,
reclamei: porra, e o cara do sobreaviso? — conta Borges.
— Tá doente — respondeu o
interlocutor.
Estava abortado o feriadão de
Ano-Novo de Amaral, Borges e outros cinco colegas.
— Voltava do enterro da minha sogra
quando fui avisado. Fomos só com a roupa do corpo, sem mala, sem nada —
lembra o comissário José Omar da Silveira Morais.
O Caravelle, prefixo PP-PDZ,
decolou do Galeão às 15h com os sete tripulantes, chegando perto das 18h
na capital uruguaia. No saguão do aeroporto de Carrasco, Marília se
virara para segurar bolsas com roupas, fraldas, mamadeiras e cuidar dos
filhos. Inquietos, os meninos corriam toda vez que uma porta abria em
direção ao pátio dos aviões. Prestativo, um policial se apressou em
entreter as crianças.
— Uma ironia, ajudando uma pessoa
que sequestraria um avião — recorda Marília.
A ordem é ir para Cuba, mas,
antes, é preciso parar em Buenos Aires
Embora não existisse detector de
metais no aeroporto uruguaio de Carrasco, Marília embarcou apreensiva no
Caravelle. Baixinha e magrinha — pesava apenas 42 quilos—, aparentava
ser mais obesa. Sob o tubinho, moda naquela época, usava uma bermuda
elástica que escondia seis revólveres.
Atrapalhada com bolsas, crianças e
bagagens no corredor do avião, Marília aproveitou a confusão para ir ao
banheiro, retirar as armas e entregar uma para cada colega. Considerando
os sequestradores, eram 26 passageiros — 12 brasileiros e os demais
uruguaios, argentinos, dois romenos e um norte-americano.
Os sequestradores se espalharam
pelos 64 lugares do Caravelle, quase vazio. Marília, os filhos e Galeno
ficaram no meio. James Allen da Luz, o líder, se acomodou na primeira
fila. Isolde Sommer e outro sequestrador foram para o fundo.
Era noite de 1º de janeiro quando o
Caravelle da Cruzeiro do Sul, prefixo PP-PDZ, partiu do Aeroporto de
Montevidéu, no Uruguai, em direção ao Rio de Janeiro, com escalas em
Porto Alegre e São Paulo.
A aeronave era comandada pelo
piloto Mário Amaral, carioca, com 19.500 horas de voo e 23 anos na
Cruzeiro do Sul, pelo copiloto Silvio Eduardo de Carvalho Fróis, 11.400
horas de voo e 12 anos de empresa e pelo 1º Oficial Hélio Batista
Borges, engenheiro de voo, com 4.200 horas de voo. Os demais tripulantes
eram as comissárias de bordo Nerli Baradel e Eliete Dias de Carvalho, e
pelos comissários de bordo José Omar da Silveira Morais e Ogler Passos
Soares.
Quatro minutos depois da decolagem,
a aeronave ainda inclinada, Nerly Baradel, chefe dos comissários,
saudava os passageiros com anúncios de praxe.
— Senhoras e senhores, este é o voo
114 com destino ao Brasil, com escalas em Porto Alegre, São Paulo e Rio
de Janeiro...
Alguém resmungou que o voo original
não pararia em Porto Alegre, quando James sacou o revólver e gritou:
— Agora!
Empurrou Nerly e invadiu a cabina,
que não ficava trancada. Lá estavam o comandante Mario Amaral, o
copiloto Silvio Eduardo de Carvalho Fróes e o segundo oficial Hélio
Borges.
— Estava meio sonado e apareceu
aquele maluco com um revólver na minha cara, um Smith & Wesson, muito
bonito, niquelado, engatilhado. Via as balas no tambor — diz Borges.
— Isto é um sequestro. Mude o rumo
para Cuba.
James anunciou o sequestro,
exigindo que a aeronave fosse para Cuba. O comandante tentou argumentar.
Advertiu que o Caravelle só tinha combustível para duas horas e
precisaria parar em Porto Alegre para abastecer.
O comandante Amaral e o oficial
Hélio Borges tentaram convencer os piratas aéreos da impraticabilidade
do voo até Havana, mas seus argumentos foram inúteis.
Os sequestradores deixaram claro
que não aceitavam em hipótese alguma que o aparelho aterrissasse no
Brasil, embora os pilotos tivessem advertido que surgiriam dificuldades
de pouso na rota do Pacífico.
— Brasil, não — gritou James.
A alternativa era Buenos Aires. O
piloto reprogramou os controles e avisou:
— Senhores passageiros, fiquem
calmos, o avião está sendo sequestrado.
Ao ouvir o alerta, Sofia Ferber, 70
anos à época, desmaiou, caindo ao lado do marido José Ferber, 72 anos. O
casal de poloneses naturalizado uruguaio viajava com a filha Sara, 39
anos, para o casamento do outro filho, em São Paulo. No fundo do avião,
os comissários Eliete Dias de Carvalho e Ogier Passos Soares também já
estavam dominados. Passos ofereceu aos sequestradores cigarros,
fósforos, lanche, água, café, bebidas. Tudo estava ao dispor.
— A tensão era grande, e tentamos
agradá-los. Sabe-se lá qual seria a reação. Estavam ali para ganhar ou
perder — lembra ele.
Os militantes redigiram um
manifesto contra a ditadura. Borges deveria descer para reabastecer a
aeronave em Buenos Aires e entregar o documento às autoridades locais.
O pedido de pouso em Ezeiza exigia
contato com a torre de controle, e os pilotos relataram o que ocorria no
aparelho.
A aeronave seguiu então em direção
a Argentina, realizando uma primeira escala às 19h59min em Buenos Aires
para reabastecimento.
Com problemas cardíacos, José e
Sofia Ferber foram os únicos a descer, separando o casal da filha Sara.
O assunto logo chegou à imprensa.
— Avisaram ao mundo inteiro que eu
estava no avião com duas crianças. Foi o que salvou as nossas vidas —
comenta Marília.
O Caravelle foi abastecido, a
contragosto das autoridades argentinas. Mandaram alinhar caminhões na
pista para trancar a passagem, mas não conseguiram impedir a decolagem,
que aconteceu às 21h37min, desta vez em direção ao norte do Chile.
O passageiro secreto
Já era 00h20 da madrugada de
sexta-feira, 2 de janeiro de 1970, e o Caravelle se aproximava da pista
do aeroporto Cerro Moreno, em Antofagasta, no norte chileno, para o
segundo reabastecimento.
Apesar de os pilotos desconhecerem
a rota — a Cruzeiro do Sul não voava para o Chile —, a viagem
transcorreu sem sobressaltos. Preocupado com a onda de sequestros de
aviões, o copiloto Sílvio Eduardo de Carvalho Froés já vinha pegando
informações com colegas sobre o caminho para Cuba. E durante o
reabastecimento em Buenos Aires, o segundo oficial Hélio Borges tinha
ganho um mapa de navegação nos Andes de um profissional da Varig.
Em terra chilena, o clima era de
serenidade. O governo socialista de Salvador Allende era simpático às
causas dos guerrilheiros brasileiros. Além de combustível, Borges e o
comissário José Omar da Silveira Morais puderam descer para pegar comida
e jornais.
Mas, dentro do avião, uma
passageira, Mary Nôvo (já falecida), explodia de raiva. Ela e o marido,
o engenheiro civil Luiz Fernando Nôvo, voltavam para São Paulo depois de
alguns dias de férias na Argentina e no Uruguai. E Mary não se
conformava com a situação.
— Minha mulher colocou o dedo na
cara de um deles e deu uma de mamãe. Disse: "Você é um desgosto para a
tua mãe, ela nunca mais vai te ver" — recorda o engenheiro.
Surpresa maior com os passageiros
ainda estava por vir: sentado bem à frente, Flávio Macedo Soares, 29
anos, dava início a uma "queima de arquivo". Com um faca de metal,
cedida por uma comissária, rasgou um bolsa de lona, lacrada com uma
tarja verde e amarela. A todo instante, ia ao banheiro e voltava. A
movimentação chamou atenção.
— Perguntei ao Galeno: você acha
que esse homem está com dor de barriga? E fomos ao banheiro. O vaso e
outros compartimentos estavam todos entupidos de papéis. Não dava para
ler. Penso que eram relatórios da Operação Condor. Ele levou o maior
susto quando foi descoberto — lembra Marília Guimarães.
Soares, já falecido, era secretário
do Ministério das Relações Exteriores. Sua missão: transportar a mala
diplomática até o Rio de Janeiro — o meio mais seguro para remessa de
documentos oficiais e secretos que não podiam ser despachados pelo
correio.
Quando Brasília descobriu que
Macedo estava entre os passageiros, o pânico se instalou no Itamaraty,
mas em sigilo absoluto. Os temores eram: Soares estava ou não com a mala
diplomática? Quem colocaria as mãos nos documentos sigilos, os
sequestradores ou os comunistas cubanos? Nos céus dos Andes, Soares
enfrentava uma turbulência pessoal
— O James achava que ele estava a
serviço da CIA, que estava armado. Falou ao comandante que iria
interrogá-lo e, caso reagisse, seria morto — diz Borges.
A tripulação se desesperou. O
secretário do Itamaraty foi revistado e, por sorte, só portava o
passaporte vermelho. Depois, com um revólver apontado para o peito,
teria sido obrigado a escrever uma carta na qual admitia ter violado a
mala diplomática. Em Havana, os documentos rasgados, parte deles sujos
de fezes e urina, teriam sido entregues a autoridades locais, que, por
sua vez, teriam devolvido os papéis ao secretário do Itamaraty. Ao final
do sequestro, o governo brasileiro evitou falar sobre o episódio.
Às 00h52min, o PP-PDZ levantou voo
em direção a Lima, no Peru.
27 horas de medo em Lima
Assim que o trem de pouso tocou o
aeroporto Jorge Chávez, em Lima, às 3h10min, o Caravelle foi cercado por
militares peruanos. A ordem do general Velasco Alvarado, presidente do
Peru, era de negociar à exaustão uma rendição, "matando" os
sequestradores no cansaço.
A ação dos brasileiros era manchete
mundial naquele 2 de janeiro de 1970, e jornalistas, políticos e
curiosos correram para o aeroporto.
O reabastecimento foi rápido, mas
quando o comandante Mario Amaral tentou ligar as turbinas - sem as
baterias apropriadas - os motores não entraram em funcionamento.
O Caravelle era um avião para voos
curtos (até 4 mil quilômetros) e não era utilizado em rotas
internacionais. Ir até Montevidéu era como um voo de cabotagem.
Como as empresas aérea peruanas não
utilizavam Caravelle, o aeroporto de Lima não estava aparelhado para
atender as particularidades do avião de fabricação francesa, que exige
uma quantidade muito grande de energia para o arranque das turbinas.
O 2º Oficial Hélio Batista Borges -
engenheiro de bordo - desceu para providenciar o reabastecimento,
baterias, comida e outras coisas necessárias à partida para a próxima
escala, prevista para o Panamá.
Enquanto eram providenciadas as
baterias, os sequestradores falaram à imprensa numa entrevista coletiva
sem nenhuma interferência das autoridades peruanas.
Inicialmente se identificaram como
James Allen da Luz, Atos Magno Costa e Silva, Cláudio Galeno Magalhães
Linhares, Isolde Sommer e Luis Alberto Silva (este piloto profissional).
Disseram pertencer a Vanguarda
Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), que estavam armados com
revólveres, punhais e granadas.
Informaram que o grupo era
conhecido como "Comando João Domingues", em homenagem a um companheiro
que - segundo eles - "como muitos outros morreu nas mãos das Forças
Armadas brasileiras, transformadas em agentes policiais do imperialismo
no Brasil".
Declararam que uma de suas missões
era levar a Cuba duas crianças, de dois e três anos (esta uma menina),
filhos de um subversivo então preso no Brasil. A mãe das crianças estava
no avião, mas não havia sido identificada.
Num manifesto escrito, os
sequestradores acrescentaram que as crianças não eram, portanto, como
foi dito inicialmente, reféns: "não é costume da VAR-Palmares usar
pessoas como reféns".
Marília, a guerrilheira que fugia
para Cuba com os dois filhos — o principal motivo do sequestro do
Caravelle—, lembra ter visto faixas de apoio a ela nas janelas do
aeroporto. Mas, aos poucos, foram sumindo, enquanto se aproximavam
carros militares de combate.
— Era uma praça de guerra.
Colocaram uma metralhadora quase encostada na cabina. Queriam bloquear o
avião de qualquer jeito. Soube, depois, da preocupação com aquela mala
diplomática do Itamaraty, mas, na hora, não liguei um fato a outro —
recorda Borges.
Logo que desceu, ele foi chamado
para falar com autoridades peruanas, e voltou à aeronave como uma
proposta: asilo político para Marília e os filhos. A contrapartida:
liberar os reféns, que seriam transferidos para uma aeronave militar.
— Não aceitei. Invadiriam o avião
com meus companheiros lá dentro — recorda Marília.
Além das dificuldades diplomáticas,
a viagem até Cuba estava ameaçada pelo problema técnico. Não foi
possível conseguir as baterias, e as tentativas de colocar em
funcionamento as turbinas haviam esgotado os próprios acumuladores do
Caravelle.
A companhia Avianca trouxe baterias
da Colômbia. Eram velhas e não funcionaram. As horas avançavam, e os
militantes, cada vez mais impacientes, ameaçavam matar reféns.
— Pedi baterias novas, pelo amor de
Deus. Todo mundo puto da cara dentro do avião, nervoso, falando coisas
horríveis. Depois de quase um dia de conversa, concordaram em comprar —
lembra Borges.
A tensão ia aumentando no aeroporto
de Lima. A LAN, empresa chilena que já tivera experiência semelhante com
um de seus aviões sequestrados, ofereceu-se para trazer de Santiago a
aparelhagem necessária à decolagem, mas quando seu avião chegou, as
baterias não adiantaram nada.
Enquanto isso, repórteres e
fotógrafos faziam plantão no aeroporto, e alguns sequestradores se
exibiam na cabina do Caravelle.
Com um cartaz de Che Guevara nas
mãos, Athos Magno Costa e Silva afirmava que iriam treinar com
guerrilheiros cubanos e celebrar os 10 anos da ascensão de Fidel Castro
e que, depois, "voltariam ao Brasil para a luta".
Ao serem questionados por um
jornalista sobre o que fariam se o avião não pudesse mesmo partir, o
sequestrador Atos Magno respondeu: "Com uma arma na mão sempre se
consegue tudo".
Isolde Sommer, a outra mulher do
grupo, foi destaque na capa de jornais. Jovem, bonita, com um belo
corpo, ela foi encarregada de vigiar a cabina de comando desde que o
avião foi sequestrado até o pouso em Lima.
— Ela era uma jovem morena, linda,
com as pernas maravilhosas. Vestia uma minissaia estampada, com um palmo
de comprimento — lembra o comissário José Omar da Silveira Morais, hoje
morador de Barbacena (MG).
Da janela, Isolde deixou cair uma
carta e duas notas escritas em letra de imprensa. A carta e uma das
notas foi recolhida por um oficial de polícia, depois de alguma luta com
os jornalistas, que ficaram com a outro nota.
A polícia não mostrou os
documentos, mas um funcionário do aeroporto informou que diziam ser o
sequestro um ato de represália pela captura de um membro da organização
terrorista Tupamaros, do Uruguai.
O 2º Oficial Hélio Borges também
falou à imprensa e relatou que os sequestradores estavam armados com
"grandes revólveres" e que mostravam um pacote dizendo que eram
explosivos, sem que a tripulação tenha podido comprovar. Sob o forte
calor, o engenheiro de voo disse que os tripulantes estavam bem, embora
cansados.
No Rio de Janeiro, a Cruzeiro do
Sul informava que outro avião - proveniente de Santiago - deveria chegar
a Lima por volta da meia-noite, levando novos geradores para tentar dar
partida às turbinas do Caravelle.
A tensão tomou conta do aeroporto
de Lima quando policiais armados de metralhadoras cercaram o avião. A
imprensa e os curiosos foram imediatamente afastados.
Os jornalista conseguiram ver
dentro do avião um dos sequestradores - que antes fazia o V da vitória -
andar de um lado para o outro com um embrulho que, segundo eles,
continha explosivo.
Os assaltantes recusaram a proposta
para colocar o avião no parque de trânsito, em vez de ficar na área de
reabastecimento. Com a noite, a temperatura amenizou, mas no avião sem
ar condicionado o calor ainda era forte.
A tensão suscitada pela
possibilidade de violência aumentava e um dos sequestradores advertiu
que, se fosse impossível levantar voo com o Caravelle, a Cruzeiro do Sul
deveria enviar outro avião para apanhá-los e prosseguir viagem até Cuba.
A policia peruana, entretanto,
estava pronta para responder com força se os sequestradores tentassem
alguma manobra.
Após muitas horas de medo, às
5h59min do dia 03 de janeiro, o Caravelle PP-PDZ levantou voo de Lima.
Foram 27 horas sob grande tensão em solo peruano.
O comandante Mário Amaral havia
finalmente conseguido enfim acionar as turbinas do jato com o auxílio de
baterias de terra trazidas de Santiago do Chile por um avião da
Aerolíneas Peruanas e a assistência de um mecânico enviado especialmente
pela LAN Chile.
A decolagem foi acompanhada por
centena de curiosos, jornalistas e policiais armados, que estavam
dispostos a responder pela força a qualquer violência dos
sequestradores, caso o avião não pudesse mesmo levantar voo.
Pouco antes de partir, o comandante
declarou que talvez outros cinco passageiros fossem cúmplices dos
sequestradores identificados. Um deles permanecia sentado com um
embrulho no colo, que poderia ser uma metralhadora.
No decorrer do voo houve discursos
a bordo e distribuição de panfletos políticos.
No Panamá, plano de invasão
assusta comissário
Nada poderia ser pior do que as
tenebrosas 27 horas em Lima, mas a parada seguinte do voo, reservava
momentos de tensão no Panamá, a última escala antes de Cuba.
Nem os tripulantes nem os
sequestradores previram que o ambiente seria tão hostil. Sob forte
domínio de Washington, o país estava recheado de militares americanos
que controlavam a região do Canal do Panamá, com treinamento de
guerrilha e tortura na selva.
A chegada, na manhã de 3 de janeiro
de 1970, até que foi tranquila. O Caravelle chegou ao aeroporto de
Tucumén, no Panamá, às 9h14min (hora de Brasília) e parou longe do
saguão, e os únicos que se aproximaram foram dois funcionários da Shell,
em um Jipe, para providenciar o abastecimento.
Como nos outros países, o segundo
oficial Hélio Borges desceu com um cartão de crédito da Cruzeiro do Sul
para comprar o combustível. Foi quando avistou um homem de terno e
gravata, caminhando na direção do veículo. Era um representante da
embaixada do Brasil, exigindo que todos desembarcassem.
— Falei que já tinham tentado isso
no Peru. Mas voltei ao avião, e a resposta dos sequestradores foi: "Não
tem papo, manda ele à merda".
Borges seguiu no Jipe para o hangar
da Shell e foi abordado por outro homem falando português, acompanhado
de militares e seis soldados panamenhos com fuzis a tiracolo. Era um
coronel do Exército:
— Preciso da sua ajuda. Tenho
ordens de parar este avião aqui. Como vai ser?
— Ele queria me dar uma pistola 45
para que eu atirasse no primeiro sequestrador que visse dentro do avião.
Claro que disse não. Aí ele falou: "Então, vamos mandar comida
envenenada ou colocar gás na tubulação de ar". Vai matar muita gente, eu
disse — lembra Borges.
Outro oficial brasileiro,
indignado, gritou:
— É por causa de um bunda mole como
você, que estão sequestrando avião.
Enfurecido, Borges se virou de
costas em direção ao galpão de combustíveis. O coronel o agarrou pelo
braço e advertiu:
— Faça o que achar melhor, mas
antes me diz o teu nome. Fique sabendo que, ao voltar ao Brasil, você
vai ver o que é bom pra tosse.
O comissário José Omar da Silveira
Morais desceu para buscar refeições e viu marines americanos atrás de
árvores, com uma metralhadora com luneta e mira telescópica apontada
para a cabine do Caravelle. Um militar teria tentado cooptá-lo,
oferecendo uma arma.
— Eu deveria entrar atirando e
eles, depois. Como não sabiam quem eram os sequestradores, seria um
banho de sangue. Eu seria o primeiro a morrer. É claro que não aceitei —
diz Silveira.
Suspeito de ter colaborado com os
sequestradores, Silveira foi pressionado no Brasil. Acabou perdendo o
emprego dois anos depois. Hoje, luta por indenização. Sempre negou
relação com os militantes.
Além de combustível, a aeronave
precisava de um lubrificante para turbinas. Funcionários reviraram
armários da Shell, folhearam catálogos em busca de um similar, e nada.
Para completar, o aeroporto de Tocumen não dispunha de fonte de energia
para acionar os motores do Caravelle. Após cinco horas, as turbinas
foram acionadas com baterias velhas.
Repetia-se, em escala menor, o
drama de Lima: o avião, depois de reabastecido, não conseguia acionar as
turbinas por falta de bateria de terra. A única apropriada estava fora
de uso há 18 meses, desde que uma companhia venezuelana deixara de
operar os últimos Caravelle no aeroporto de Tucumén.
Enquanto se tentava colocar o
gerador em funcionamento, foram fornecidas aos ocupantes do avião 35
refeições e muitos refrigerantes. Sete camisas brancas limpas foram
cedidas à tripulação.
Foi possível também, com baterias
auxiliares, manter em funcionamento a aparelhagem de refrigeração do
avião, o que poupou aos ocupantes enfrentar novamente o forte calor que
haviam sofrido em Lima.
O avião estava cercado por soldados
da Guarda Nacional, mas apenas o diretor da Aeronáutica Civil, Capitão
Patrício Janson, pode aproximar-se quando o comandante Mário Amaral
desceu do avião para supervisionar o reabastecimento.
Amaral aproveitou para conversar
com o Capitão Janson e com o Embaixador brasileiro, Carlos Duarte da
Rocha.
O piloto informou que Isolde Sommer
permaneceu o tempo todo na cabine de comando ameaçando a tripulação,
apontando para ele uma pistola. Disse, também, que os passageiros
estavam bem, embora cansados, e que as duas crianças brincavam
tranquilamente a bordo.
O diretor da Aeronáutica Civil
informou à imprensa que havia conseguido jornais para os passageiros e
que o avião encontrava-se isolado pois os sequestradores estavam “muito
nervosos e cada vez mais impacientes”.
Independente de a situação ser
delicada em relação ao avião da Cruzeiro do Sul, o aeroporto prosseguiu
funcionando normalmente para outros voos.
Finalmente, depois de mais de cinco
horas de esforços, os mecânicos conseguiram deixar a bateria de terra em
condições de acionar as turbinas do Caravelle.
Às 14h31min, o avião levantou voo
para a última etapa de sua forçada viagem a Cuba, que seria alcançada em
pouco mais de duas horas de viagem.
Em Cuba, os papéis se invertem
Durante a viagem entre a Cidade do
Panamá e Havana uma luz vermelha ficou o tempo todo piscando no painel
da cabine do Caravelle. Quase sem lubrificante, uma das turbinas
ameaçava ter uma pane a qualquer instante.
Às 17 horas (horário de Brasília) o
PP-PDZ aterrissou no aeroporto José Martí, em Havana.
A recepção no aeroporto José Martí
também estava a cargo de militares. Mas, desta vez, aliados dos
sequestradores.
Um grupo de oficiais entrou na
aeronave perguntando quem era a mulher com os dois filhos. Carlos
Lamarca, um dos chefes do grupo guerrilheiro Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), tinha enviado carta para El Comandante Fidel
Castro, pedindo uma atenção especial a Marília Guimarães.
— Cheguei que era um trapo em
Havana, quase delirando. Passei a maior parte do tempo (dois dias) sem
comer e sem beber com medo de envenenamento. Só molhava os lábios com o
que tinha nas mamadeiras das crianças. O sequestro terminaria quando
acabasse o leite e a água deles — garante Marília.
— Os sequestradores davam as
refeições, aleatoriamente, para pessoas da tripulação e esperavam
bastante tempo para comer — lembra o copiloto Sílvio Eduardo de Carvalho
Fróes.
Ele, os colegas e os passageiros
foram levados pelos militares cubanos em um micro-ônibus para uma sala,
também isolada, com sanduíches e refrigerantes.
— Fizeram muitas perguntas,
querendo saber qual a tendência política da gente — conta a chefe dos
comissários, Nerly Baradel.
O comissário Ogier Passos Soares
afirma que, além do interrogatório, ainda foram submetidos à sessão de
fotos e coleta de impressões digitais.
— Fotos de frente e de lado, como
bandido — lamenta ele.
A alegação era de que a tripulação
estava ali clandestinamente, pois não tinha autorização legal para
pousar em Cuba. Os sequestradores foram acomodados no Hotel Capri, e os
reféns, no Havana Riviera, distantes poucas quadras. Por algum tipo de
precaução, foram todos proibidos de sair.
Eles foram mantidos isolados pela
polícia local dos outros hóspedes e de qualquer visitante ou jornalista.
Apesar da liberdade para tomar
banho e descansar, a alta carga de estresse impedia os reféns de
adormecer.
— Fiquei 60 horas acordado. E,
depois que cheguei em casa, também custei a dormir. Em uma situação
dessas, você perde a noção do sono, do frio, da fome — conta o copiloto
Fróes.
O sequestro tinha acabado, mas a
confusão envolvendo o Caravelle iria longe. Além dos problemas mecânicos
a serem resolvidos (novamente a dificuldade no arranque das turbinas), a
aeronave não poderia regressar ao Brasil sem o pagamento de taxas
aeroportuárias cubanas — há relatos de que seriam de US$ 20 mil a US$ 50
mil.
Como os militares tinham cortado
relações diplomáticas com Cuba em 1964 (reatadas só em 1986), o Brasil
precisou pedir ajuda à embaixada da Suíça para desatar os nós.
Às 20h03min (hora de Brasília) do
dia 6 de janeiro, o Caravelle decolou do aeroporto José Marti, em Havana
em direção ao aeroporto Isla Verde, em San Juan, em Porto Rico,
aterrissando às 22h25min, onde os passageiros jantaram e deram
explicações ao FBI (a Polícia Federal americana).
Após 136 horas de muita apreensão e
incertezas, o Caravelle PP-PDZ tocou, às 11h23min do dia 7 de janeiro, a
escaldante pista do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.
Entre Havana e o Rio, houve escalas
em San Juan (Porto Rico), Manaus e Brasília.
Assim que as turbinas pararam, um
ônibus militar conduziu os sete tripulantes e nove passageiros para o
interrogatório, durante o qual houve projeção de slides. Eles foram
proibidos de contar a verdade sobre o sequestro. Às 13h45min, os
tripulantes e os passageiros foram liberados. Três passageiros
argentinos ficaram no Rio e os demais seguiram para São Paulo em outro
Caravelle.
Terminava, assim, um dos mais
longos e, com certeza, o mais dramático seqüestro da história da aviação
brasileira.
Fonte: José Luís Costa (Zero
Hora) / Jornal do Brasil / Folha de S.Paulo
Pesquisa e edição de texto: Jorge Tadeu da Silva
. |
.
CLIQUE NA SETA ABAIXO E
CONTINUE ACOMPANHANDO ESTA HISTÓRIA.
|
|
Texto e edição de imagens
por Jorge Tadeu da Silva |
|
Fontes de pesquisa:
Zero Hora / ASN / Wikipédia
Jornal do Brasil / Folha de S. Paulo
/ O Globo
. |