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Sob o comando do copiloto, o 707
cargueiro da Transbrasil cai em Guarulhos momentos antes de pousar e
deixa um saldo de 22 vítimas fatais.
Na manhã de segunda-feira, o
piloto carioca Ronaldo Carvalho Oliveira, de 39 anos, acordou para a
morte. Barbeou-se, vestiu-se, calçou-se. Era seu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento. Na hora do almoço ele abriu a porta de
sua casa, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, beijou a mulher e os
três filhos - de 9, 13 e 15 anos de idade - e selou uma série de
promessas. Na quinta-feira, véspera do feriado, eles viajariam para um
sítio perto de Saquarema, na Região dos Lagos fluminense.
No sábado,
como em todos os sábados, o pai e os três garotos brincariam na
Associação de Aeromodelismo. O domingo ficara reservado para o Grande
Prêmio de Fórmula 1. Nenhuma das promessas de Ronaldo pôde ser
concretizada. Ao se despedir da família, ele estava apenas dando o
primeiro passo de uma caminhada rumo à morte sem aviso prévio.
Às 13 horas Ronaldo embarcou como
passageiro comum para São Paulo, onde às 2 horas da madrugada de
terça-feira seguiria para Manaus a bordo do Boeing 707, um avião
cargueiro de prefixo PT-TCS, da Transbrasil. Com ele voaria o comandante
Dorival Scanavach, 39 anos, um veterano piloto com cerca de 10.000 horas
de voo e vinte anos de profissão.
O piloto Ronaldo Oliveira e,
à direita, o copiloto Dorival Scanavach
Fotos: Revista Veja
Dia seguinte, terça-feira, 21 de
março de 1989. O relógio indicava 8h28 da manhã em Manaus quando a dupla
de pilotos, acompanhados do engenheiro de voo Giseldo Constantino,
avisou à torre de controle que o 707 subiria aos céus levando as 26
toneladas de equipamentos eletrônicos. O Voo Transbrasil 801 era um voo
de carga operado pela Transbrasil e que cobria a rota São Paulo – Manaus
– São Paulo, com tripulação simples de dois pilotos e um engenheiro de
voo.
No assento esquerdo, mãos firmes no
manche, estava Ronaldo. Para ele, as três horas e meia de voo entre
Manaus e São Paulo representavam pontos a mais em sua corrida para se
tornar também um comandante de 707. Veterano piloto de aviões 727, ele
estava sendo instruído para comandar também o 707. Em apenas quatro
meses Ronaldo conseguira completar cinquenta horas de voo com o 707 -
outras 100 horas e ele estaria apto para orientar um voo completo.
O Boeing 707 cargueiro, matrícula
PT-TCS, aproximava-se do Aeroporto de Guarulhos retornando de Manaus. O
tempo estava claro, com algumas camadas de nuvens a 3000 pés, o que não
impedia que o aeroporto operasse em condições visuais.
Um NOTAM informava que as pistas
09R e 27L estariam interditadas a partir das 15:00 (UTC) para obras de
limpeza e pintura.
Porém, momentos antes do início da
aproximação, uma outra aeronave tivera problemas técnicos no trem de
pouso e deixou impraticável a pista 09L.
Com a iminência de fechamento da
09R por força do NOTAM, o controlador de tráfego aéreo liberou a
restrição de velocidade, comum para voos abaixo de 10.000 pés na TMA-SP
à época.
Faltavam poucos minutos para que a
referida pista fechasse e a tripulação passou a proceder com a motivação
principal de chegar a tempo.
Seis minutos antes do limite da
hora, o 707 passava o marcador externo a 400 pés acima da rampa ideal e
com velocidade 90 nós além da prevista para aquela situação.
Dai para frente, uma sucessão de
improvisações nos procedimentos de cabine tomou lugar do check-list, sob
o olhar aflito do engenheiro de bordo e a complacência do comandante.
Instrutor e aluno adotavam
seguidamente condutas descoordenadas e a cada movimento da dupla, a
razão de descida da aeronave aumentava.
A despeito dos avisos de “Sink
Rate” e “Pull Up”, nada foi feito para recolocar a aeronave no seu
perfil ideal e dois minutos mais tarde ela afundava a uma razão de 4000
pés por minuto.
A 2.700 metros e onze segundos da
pista do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, às 11h54,
um grito do engenheiro de voo sinalizou a aproximação de Ronaldo com a
morte anunciada.
"O avião está muito baixo, vai
bater", gritou Giseido Constantino. Um palavrão antecedeu a uma intensa
gritaria, o zumbido forte de um alarme e o silêncio total.
O Boeing colidiu com o solo três
minutos antes do fechamento da pista, batendo nas casas e explodindo nas
imediações da Avenida Otávio Braga de Mesquita, arrastando-se na área de
um terreno ocupado por favelas do Jardim Ipanema, Vila Barros, em
Guarulhos.
Antes que uma segunda explosão, cinco minutos depois,
consumisse o 707, uma equipe de voluntários da Brigada de Incêndio ainda
teve tempo de se aproximar do Boeing caído.
Dentro da cabine Ronaldo se
debatia, esmurrava o vidro tentando escapar pelo para-brisa. Não houve
tempo. Além de Ronaldo, do comandante Scanavach e do engenheiro de voo,
outras dezenove pessoas morreram. Mais de cem ficaram feridas.
No momento da queda, a aeronave
contava com aproximadamente quinze mil litros de combustível e
incendiou-se imediatamente.
O Boeing prefixo PT-TCS arde
em chamas antes de explodir
Foto: Klaus Werner /
Revista Veja
Foi o quarto acidente grave em 1989
envolvendo um jato comercial - e décimo nos últimos doze meses, um dos
períodos mais negros da historia da aviação, em que quase 700 pessoas
morreram.
A queda do avião da Transbrasil
alimentou também as suspeitas que sombreavam toda uma geração de jatos
antigos, concebidos há mais de trinta anos e que, como o 707 acidentado
em Guarulhos, ainda estavam em operação em várias partes do mundo.
Os
"jatos geriátricos", como eram chamados nos Estados Unidos,
emparelhavam-se com o terrorismo entre as preocupações principais das
autoridades mundiais da aviação às voltas com uma época ingrata de
transição tecnológica – uma fórmula perigosa que inclui aviões velhos,
pilotos inexperientes e tráfego crescente.
Estol
"O avião pendeu primeiro para a
direita, depois para a esquerda e acertou com as asas e as turbinas dois
pequenos prédios de um e dois andares", contou o pedreiro José Jardim,
que consertava o telhado de um barraco na Vila Scynthila, o alvo do
Boeing que ruiu.
"O avião deslizou lentamente,
parecia um trem de metrô atravessando as casas", contou o fotógrafo
Klaus Werner, que sobrevoava num helicóptero a cabeceira da pista do
aeroporto e fotografou o Boeing quando ele começou a incendiar-se.
De cara, um falha do piloto foi
apontada como a causa mais provável do acidente, segundo avaliação de
técnicos em aviação e pilotos de longa experiência.
O 707 cargueiro da
Transbrasil voava a menos de 250 quilômetros por hora, a velocidade
aproximada para um jato que está prestes a pousar.
Neste momento, o
comandante e o copiloto já tinham iniciado a operação de check - cerca
de dez instrumentos são observados a cada 3 segundos, além do contato
com a torre e o radar meteorológico.
Por descuido, o avião teria
desacelerado de forma demasiada e perdido sua sustentação. No jargão dos
aeronautas, ele teria "estolado".
As hélices das turbinas foram
encontradas sob os escombros rachadas, numa evidência de que no instante
da queda tentou-se arremeter o aparelho, acelerando ao máximo.
Logo
depois da queda, despontou a hipótese de que o 707 estaria voando a uma
velocidade alta nas proximidades do aeroporto - a cerca de 500
quilômetros por hora - e o piloto fora obrigado a diminuir
repentinamente o arranque.
Contra essa tese havia um fato inegável: o
trem de pouso já havia descido, e numa velocidade exagerada ele
arrebentaria.
Também a torre de controle do aeroporto não registrou
sinais dessa velocidade excessiva. Duas outras hipóteses, mais remotas,
chamam a atenção dos técnicos.
Havia indícios de que um dos spoilers, o
freio aerodinâmico usado em terra e excepcionalmente no ar, teria sido
acionado por engano.
É possível, ainda, que as 26 toneladas de carga do
707 da Transbrasil tenham se soltado no interior do avião, provocando o
desequilíbrio fatal.
Aprendiz
A presença de Ronaldo Oliveira no
assento esquerdo, pousando o avião, não seria surpreendente se tudo
tivesse corrido bem. É norma na aviação que copilotos, como Ronaldo,
controlem os manches dos aparelhos, mesmo porque somente assim eles
podem atingir o número necessário de horas de voo para serem promovidos
a comandantes.
Quando o aprendiz está pilotando, o comandante tem a
obrigação de orientá-lo. Era exatamente assim que agia Dorival Scanavach.
Ocorre que Ronaldo, com 3.500 horas de voo e dez anos de carreira, era
um novato em 707. Acostumado a pilotar jatos 727, cuja velocidade de
reação é superior à dos 707, ele teria superestimado o funcionamento das
turbinas do avião que caiu.
O acidente com o jato da
Transbrasil de prefixo PT-TCS foi o quarto da história do Aeroporto
Internacional de Guarulhos, inaugurado em agosto de 1985 sob um manto de
suspeitas.
Na época, especialistas em aviação insistiam em dizer que ele
fora construído num local onde a neblina constante inviabilizaria sua
operação normal. Eram mesmo raros os dias em que o aeroporto não fechava
por falta de visibilidade.
A tragédia serviu também para
marcar a ferro e fogo a Transbrasil, uma empresa falimentar, e que desde
1987 estava sob intervenção do governo. "Ninguém irá deixar de apertar
um parafuso por causa da intervenção, mas ela é uma usina de desânimo",
disse na época Carlos Camacho, presidente da Associação de Pilotos da
Transbrasil.
Estava previsto que a empresa
desembolsaria 122.000 cruzados novos para indenizar cada uma das
famílias das vítimas do acidente.
Turbina no bar
No solo, o Boeing 707 da
Transbrasil derrubou seis casas de alvenaria, sete barracos, dois
prédios de apenas um e dois andares, e dois galpões comerciais.
Em sua primeira colisão, ele fez
duas vítimas fatais. No apartamento número 1 do prédio de dois andares
da Avenida Otávio Braga de Mesquita, morreram a dona de casa Carmelina
dos Santos Silva, 46 anos, e seu filho Fábio Veloso da Silva, de 2 anos.
A asa esquerda do avião ficou cravada no segundo andar, enquanto uma das
turbinas derrubou paredes, invadiu o apartamento e esmagou mãe e filho
contra a parede.
"Parecia um vulcão", lembrou o
comerciante Edson Concourd, dono do prédio de uma loja de móveis
encravada no andar térreo.
No pequeno edifício, ele alugava o
apartamento para o cabeleireiro Jaime Nascimento, 31 anos, que estava no
trabalho quando soube do acidente através de um amigo. "Aqui não moro
mais", disse ele.
Jaime Nascimento em frente
ao prédio destruído: "Aqui nunca mais"
Foto: Antonio Milena /
Revista Veja
Manoela Alves da Silva, 57 anos,
morava há trinta anos no local onde caiu o jato. "De três anos para cá
comecei a ter pesadelos com acidentes, com aviões caindo sobre minha
cabeça", disse ela. "Esse pesadelo virou realidade."
Na trilha da destruição, uma das
turbinas voadoras pegou uma jovem de 21 anos de idade, Eliana de Souza,
que uma semana depois do acidente completaria nove meses de gravidez.
Ela saíra de casa para telefonar a um hospital em Guarulhos, à procura
dos resultados dos exames pré-natais. Com eles, Eliana marcaria o dia e
a hora do parto. Levada às pressas para o hospital, os médicos
conseguiram fazer uma cesariana. A criança nasceu, mas sobreviveu por
poucas horas.
A turbina encravada no
bar do nissei Keigo Tenada: "Vi uma mulher ardendo em chamas"
Foto: Antonio Milena /
Revista Veja
A turbina que a pegou continuou seu
trajeto e derrubou a parede do bar e mercearia do nissei Keigo Tenada.
"Saí correndo do bar, olhei para o lado direito e vi uma mulher pegando
fogo", disse ele. Era Eliana.
A lição de voo do piloto Ronaldo
terminara num mar de chamas, escombros e mortes.
Investigação
A análise da caixa-preta do avião
foi realizada em Washington (Estados Unidos). Os últimos 30 minutos mais
importantes de informações da caixa-preta estavam com ruídos.
A investigação do Departamento de
Aviação Civil (DAC), na época, atribuiu a causa do acidente a falha
humana — a tripulação teria cometido um erro de cálculo e aberto o
speedbrake (freios aerodinâmicos).
Segundo consta, a pista de pouso do
aeroporto seria fechada ao meio-dia para manutenção e, com isso, a
tripulação procurou acelerar os procedimentos para conseguir pousar
antes do fechamento.
Com isso, a aeronave foi perdendo
altitude e sustentação e acabou por colidir com casas e um prédio baixo
nas imediações da Avenida Otávio Braga de Mesquita, arrastando-se na
área de um terreno ocupado por favelas do Jardim Ipanema, Vila Barros.
Segundo o brigadeiro Moreira Lima,
então ministro da Aeronáutica, o Boeing-707 acidentado havia sido
inspecionado pelo DAC (Departamento de Aviação Civil) dois meses antes e
considerado perfeito.
A Transbrasil indenizou as famílias
das vítimas sete meses após o acidente.
Revista Veja - Edição 1073
Pesquisa e edição de texto: Jorge Tadeu da Silva
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Ficha técnica
Data: 21.03.1989
Hora: 11h54min
Aeronave:
Boeing 707-349C
Operadora:
Transbrasil
Prefixo:
PT-TCS
Número de Série:
19354/503
Primeiro voo:
1966
Tripulantes: 3
Passageiros: 0
Partida:
Aeroporto Internacional Eduardo Gomes (MAO/SBEG), Manaus,
Amazonas
Destino:
Aeroporto Internacional de São Paulo (GRU/SBGR), Guarulhos,
São Paulo
Local da ocorrência:
2 km (1.3 mls) a oeste do Aeroporto Internacional de São
Paulo/Guarulhos (GRU), SP
Fatalidades: 3
tripulantes e 22 pessoas em solo
A
aeronave PT-TCS
A Boeing 707 de prefixo
PT-TCS envolvida no acidente em Guarulhos, era a mesma que
havia sido utilizada nas filmagens do filme "Aeroporto", de
1970, e foi adquirida pela Transbrasil para transporte de
carga.
O PT-TCS, cargueiro,
dotado de 4 motores Pratt & Whitney JT3D-3B, realizou seu
primeiro voo em 09.06.1966, ou seja, na data do acidente
estava com 22 anos e 10 meses de uso, tendo completado
61.000 horas de voo.
O Boeing
707-349C PT-TCS no RJ em julho de 1997- Foto:
R. N. Smith Collection
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A
aeronave
Boeing 707
O Boeing 707 foi um
dos primeiros aviões comerciais a jato. Foi produzido pela
Boeing, que com esse modelo, passou a ser a maior fabricante de
aviões comerciais do mundo.
Até a década de 1950, a
Boeing era uma fabricante sem muito expressão, entre as muitas
existentes nos Estados Unidos. Era conhecida apenas por suas
aeronaves militares, e na verdade, o 707 nasceu como um projeto
de nave de reabastecimento, conhecida como KC-135A.
O Boeing 707 foi o primeiro
a ter grande sucesso de vendas, bem como a primeira aeronave
série 7X7 da Boeing. O seu principal concorrente era o Douglas
DC-8 da ex-maior fabricantes de aviões comerciais, a Douglas.
O DC-8 se mostrou um
formidável concorrente, porém o Boeing 707 vendeu mais de mil
unidades, vencendo a disputa entre as duas fabricantes.
O 707 é um quadrijato,
possuindo dois motores sob cada asa. A primeira linha aérea a
operá-lo foi a Pan Am, realizando a rota Nova Iorque - Paris, em
26 de outubro de 1958.
O alcance do Boeing 707 é
de aproximadamente 5.700 mn (10659 km), velocidade de cruzeiro
de 815 km/h, e a capacidade de passageiros, de até 202 pessoas.
O Boeing 737, o Boeing 727 e o Boeing 747 utilizaram muito da
tecnologia do seu antecessor, e podem ser consideradas como
descendentes diretos dele.
A produção do 707 começou
em 1954 e terminou em 1978, embora as versões de uso militar
tenham continuado em produção até 1991. A Boeing fabricou um
total de 1.012 unidades do avião.
A versão 707-300 foi a de
maior sucesso, com melhorias e novos motores.
Curiosidades
O ator John Travolta possui
um Boeing 707.
A operação do Boeing 707 é
vetada na maioria dos aeroportos do primeiro mundo, pelo alto
nível de ruído.
A primeira operadora no
Brasil foi a Varig, que o fez seu principal avião nas rotas
internacionais, até a chegada dos DC-10.
Também com um 707, a
empresa brasileira protagonizou um dos maiores mistérios da
aviação mundial: em 1979, o Voo Varig 967 decolou de Tokyo com
destino a Los Angeles. A aeronave com prefixo PP-VLU desapareceu
minutos depois, sem deixar rastros.
O Protótipo do
Boeing 707, o 367-80 (Dash 80) durante voo teste - Foto:
Boeing via
AirlineReporter
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Texto e edição de imagens
por Jorge Tadeu da Silva |
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Fontes de pesquisa:
Revista Veja / ASN / Jornal do Brasil / Folha de S. Paulo / Wikipédia
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