.
No início da madrugada da
quarta-feira, dia 11 de julho de 1973, o
Boeing 707-345C, prefixo PP-VJZ, da Varig, decolou do Aeroporto
Internacional de Galeão no Rio de Janeiro, Brasil, com destino a
Londres, na Inglaterra, com uma escala programada no Aeroporto de Orly,
em Paris, França.
A aeronave faria o voo RG-820, que
levava a bordo 17 tripulantes e 117 passageiros, entre eles algumas
personalidades do país: o cantor Agostinho dos Santos, a atriz e
socialite Regina Lecléry, o iatista Jörg Bruder, o senador Filinto
Müller, então presidente do Senado Federal, e os jornalistas Júlio
Delamare e Antônio Carlos Scavone.
No comando do jato estava o
comandante Gilberto Araújo da Silva, mais de 20 mil horas de voo e um
dos melhores pilotos da Varig com o título de Comandante Master (posto
máximo na carreira de piloto). Ele era auxiliado pelo 1º oficial,
Antônio Fuzimoto.
Por decisão de Gilberto, o colega
Fuzimoto faria a decolagem no Rio, pilotaria nas primeiras quatro horas
de viagem e, mais tarde, faria o pouso em Paris. Na volta da Europa,
três dias depois, Gilberto faria a decolagem e o pouso.
Além dos comandantes, havia dois
copilotos: Alvio Basso e Ronald Utermoehl. Eles iriam se revezar na
função, ocupando a poltrona do lado direito, a não ser quando Gilberto e
Fuzimoto estivessem pilotando juntos, coisa que só ocorreria nos
momentos iniciais e finais do voo. Também no cockpit, o mecânico de voo
Carlos Diefenthaler, e o navegador Salvador Ramos Heleno.
Escalados para a segunda metade do
voo, o copiloto Ronald Utermoehl (23 anos), o mecânico de voo Claunor
Bello (38 anos) e o navegador Zilmar Gomes da Cunha (43 anos) iriam
ficar descansar no alojamento da tripulação, situado na parte dianteira,
do lado esquerdo, entre a primeira classe e um dos três banheiros da
frente.
A Varig designara para o voo RG-820
a comissária Hanelore Danzberg exclusivamente para observar a qualidade
do serviço de bordo. Hanelore, Hane para os íntimos, tinha 34 anos, era
a mais antiga dos comissários do 820 e voava à paisana. O comissário
Sérgio Balbino - um capixaba fluente em inglês, francês e italiano -
ajudava alguns passageiros a acomodar a bagagem de mão nos bagageiros.
Os demais comissários escalados
para o voo eram Carmelino Pires de Oliveira Júnior (31 anos), Edemar
Gonçalves Mascarenhas (também 31), Andrée Piha (24 anos) — egípcia que
usava um passaporte amarelo, de apátrida, emitido pela ONU —, Luiz
Edmundo Coelho Brandão (35) e o francês Alain Henri Tersis (26), sendo
este, entre todos os tripulantes do VJZ, o que tinha menos tempo de
empresa — apenas um ano e cinco meses.
Como ocorre em todos os voos de
carreira, havia um chefe de equipe, João Egídio Galetti, 34 anos, que
acabara de fechar e travar a porta dianteira do 707 e desse procedimento
notificara o comandante.
Às 00h03 (horário de Brasília) o
avião levantou voo do aeroporto do Rio de Janeiro. Por seu tamanho,
conforto e velocidade, o Boeing 707 converteu-se na estrela maior da
companhia gaúcha. Apesar de poder acomodar mais de 150 ocupantes,
recebeu configuração interna extremamente confortável: somente 48
assentos na primeira classe e sessenta na turista. Além disso, contava
com nada menos que seis banheiros e mais um lavatório.
No cockpit, o mecânico de voo
Diefenthaler moveu a chave de um interruptor e desligou os avisos de
“Apertar os cintos” da cabine de passageiros. Imediatamente começou o
movimento nos seis toaletes, três em cada classe.
Embora não fosse permitido fumar no
interior dos banheiros (havia quadrinhos de aviso), dentro deles havia
cinzeiros. Isso porque a empresa sabia que diversos passageiros
ignoravam a proibição. E, já que isso acontecia, era melhor que os
viciados apagassem e deixassem os cigarros nos cinzeiros, em vez de,
desavisadamente, jogá-los nas lixeiras (depósitos de toalhas de papel
usadas).
Eram decorridos 47 minutos de voo
quando o Varig 820 atingiu o nível 330 (33 mil pés), para o qual fora
programada a primeira etapa do voo de cruzeiro. Fuzimoto fez ceder o
nariz e estabilizou o avião. A velocidade subiu para 968 quilômetros
horários, equivalente a Mach 0.8 (Mach 1 é a velocidade do som). Tudo
transcorria normalmente. Gilberto se retirou para a área de descanso.
Às 03h26, o Varig 820 subiu para o nível 370 (37 mil
pés). Acabara de bloquear a vertical da cidade de Recife e dava início à
travessia do Atlântico.
Às 4h30 da madrugada (7h30 hora
zulu), tal como havia sido
planejado, Gilberto foi acordado e assumiu o comando da aeronave. Fuzimoto foi dormir. Ainda era noite. Mas, a leste, do lado direito do
cockpit, um pouco acima da linha do horizonte, era possível ver-se o
clarão vermelho da alvorada, que logo chegaria.
A travessia sobre o Oceano
Atlântico transcorria sem sem problemas. No cockpit, o navegador Heleno
fora substituído por Zilmar. O mecânico de voo Diefenthaler dera lugar a
Claunor Bello. Alvio Basso fora rendido por Ronald Utermoehl. Gilberto
ocupava a poltrona de comando, do lado esquerdo, tendo Utermoehl à sua
direita. Fuzimoto continuava no descanso.
Os banheiros do Boeing já estavam
sendo usados havia mais de oito horas. Centenas de toalhas de papel,
amassadas e usadas, acumulavam-se no interior das lixeiras, cheias quase
até a borda. Além da atmosfera, extremamente seca, própria dos aviões, o
cano de água quente que abastecia as torneiras passava pelo interior das
cestas coletoras, aquecendo-as. A maioria das toalhas tivera tempo de
secar.
Às 08h53, o Varig 820 subiu
para o nível 390 (39 mil pés). Algum tempo depois, penetrou no espaço
aéreo europeu, pelo sul da Espanha.
Na cabine de passageiros, era
grande a movimentação. Crianças corriam de um lado para o outro. Já não
havia mais fila nos toaletes.
Na classe turística, um passageiro
entrou no banheiro central. Sentou-se pachorrentamente no vaso e acendeu
um cigarro.
Alvio Basso foi até o cockpit e
substituiu o colega Utermoehl no assento de copiloto. Fuzimoto saíra do
descanso e fizera um rápido desjejum. Só então foi para a cabine. Na
poltrona da esquerda, Gilberto pilotava o Boeing e dera início aos
procedimentos da longa descida para a área de Paris.
Tal como fora combinado, houve um
rodízio de posições. Gilberto levantou-se e passou para o assento da
direita, ocupado por Alvio Basso. Este mudou-se para o banco do
observador. Fuzimoto assumiu a poltrona da esquerda, de comando.
Lá atrás, no banheiro central, o
fumante terminou sua função. Esmagou o cigarro no cinzeiro, mas não quis
deixá-lo ali, como prova de seu pecadilho. Preferiu livrar-se da guimba,
lançando-a no orifício coletor de papéis. Ergueu-se, lavou as mãos e
saiu do toalete.
A ponta de cigarro, que não se
apagara de todo, caiu sobre os papéis usados, a maior parte seca. Uma
pequena brasa, que ainda restara, encontrou ambiente propício a se
desenvolver, no aconchego dos papéis. Surgiu um diminuto orifício,
circular, numa das folhas. Seguiu-se uma pequena chama.
Pelos alto-falantes, os passageiros
foram avisados para adiantar seus relógios em cinco horas. Já era início
de tarde em Paris.
O voo 820 desceu para o nível 350
(35 mil pés) e transpôs a vertical de Nantes. Aproximava-se de Paris
pelo setor sudoeste. Recebeu instruções para abandonar o 350 e descer
para o nível 240, em sua trajetória final. O tempo era bom em Paris. O
vento era de 340º, com oito nós de velocidade. Havia alguns cirros a 27
mil pés (9 mil metros). A visibilidade era de 15 quilômetros. A
temperatura, 24ºC.
Embora não houvesse cheiro de
queimado dentro do avião, e muito menos fumaça, o PP-VJZ deixava em sua
cola uma fina esteira branca, quase imperceptível, lançada para o
exterior pelo sistema de exaustão dos banheiros traseiros.
Do cockpit, sem ter a menor ideia
do que acontecia na parte traseira do avião, o mecânico de voo Claunor
Bello acendera as luzes de colocar os cintos e de não fumar. O movimento
nos banheiros cessou.
Às 14h40 (hora da França) o
RG-820 entrou em contato com o terminal oeste do ACC (sigla
internacional de Centro de Controle de Área) de Paris. Informou que se
encontrava numa descendente rumo ao VOR (Very High Frequency Omni Range,
um tipo de radioauxílio para navegação aérea) de Charfres (ponto de
entrada na área de Paris). Estimava Charfres em 12 minutos.
Fuzimoto pilotava e Gilberto se
encarregava do rádio. Às 13h43 zulu o Varig 820 atingiu o nível 230 (23
mil pés).
Alguns tripulantes encontravam-se
no compartimento de descanso, do lado esquerdo da parte dianteira da
aeronave: mecânico de voo Carlos Diefenthaler, navegador Salvador Ramos
Heleno e copiloto Ronald Utermoehl, que cedera seu lugar no cockpit a
Alvio Basso.
Às 14h46, o 820 atingiu o nível
170 (17 mil pés), sempre descendo. Orly informou que a pista em uso era
a 26. Isso implicava uma grande volta ao redor do aeródromo, o que seria
feito no sentido anti-horário. As condições meteorológicas na área de
Paris permaneciam excelentes.
No cockpit, Zilmar guardava seus
mapas e Alvio Basso preenchia o relatório de voo. O mecânico Claunor
Bello dividia-se entre interruptores e instrumentos. Algumas luzes
correspondiam aos disjuntores dos banheiros, que não acusavam nenhuma
anormalidade.
Quando o 820 atingiu Charfres, o
Centro Paris determinou que descesse para o nível 120 (12 mil pés).
Mandou que efetuasse uma leve curva à direita, para ser melhor
identificado na tela do radar, e prosseguisse na descida.
O nível 120 foi alcançado às 14h50. O 100, dois minutos depois. Os passageiros foram avisados pelos
alto-falantes de que o avião se encontrava nos preparativos finais para
o pouso em Orly. Receberam instruções, em português, francês, inglês e
espanhol, para pôr as poltronas na posição vertical.
Os sacolejos indicavam que o Boeing
voava baixo. Os que se encontravam junto às janelas puderam confirmá-lo,
ao ver com nitidez os subúrbios a oeste da cidade.
Às 14h55 (hora de
Paris) o Varig cruzou o nível 80 deslocando-se na direção do VOR de
Toussus, de onde iniciaria o contorno para a pista 26.
No Controle de Área de Orly, cabia
ao trainee Christian Megret falar com o 820. Megret operava sob os olhos
e ouvidos atentos de seu instrutor, Claude Audren, um veterano de 41
anos de idade e 23 de profissão, sendo os últimos 20 em Orly.
Megret determinou ao 820 manter-se
no nível 80 (8 mil pés), na proa de Oals (outra estação de radioauxílio).
Com esse procedimento, o PP-VJZ se posicionaria no prolongamento da
perna de vento (trecho do circuito de tráfego) da pista 26, naquele
momento usada exclusivamente para pousos. Dentro de alguns minutos, o
820 estaria voando paralelamente à pista, após o que executaria uma
longa curva de 180º para a esquerda, manobra que o colocaria no eixo da
própria 26.
Como procedia do oeste (e a pista
26 era, grosso modo, no sentido leste-oeste), o Varig teria ainda uma
boa distância a percorrer até a aterrissagem.
O controlador informou que o vento
agora era de 280º, com velocidade de seis nós. A temperatura em Orly era
de 25.8ºC.
Gilberto acusou o recebimento da
mensagem e solicitou autorização para prosseguir visual para o pouso,
que foi imediatamente concedida. Em seguida, o comandante pediu aos
passageiros que afivelassem seus cintos, pois em alguns minutos
pousariam em Paris.
Na cauda, a fumaça começara a
invadir o banheiro central. Mas nos outros dois toaletes não havia
cheiro ou outro vestígio de incêndio.
Ninguém a bordo do Varig 820 tinha
a menor desconfiança do que estava acontecendo. Na cabine de comando,
nenhum dos instrumentos o acusava. Se outro avião, entretanto, estivesse
próximo ao VJZ, teria visto um longo e espesso rastro de fumaça
escapando de sua cauda, como um bombardeiro atingido pelo fogo inimigo.
Embora o Varig 820 estivesse quase
pousando em Orly, e a ordem de se manter os cintos afivelados já
estivesse em vigor, uma passageira sentiu necessidade imperiosa de ir ao
banheiro. Tendo três deles desocupados, à sua disposição, optou pelo
esquerdo. Entrou e fechou a porta.
Na cauda do VJZ, na área da galley
da classe turística, os comissários Mascarenhas, Tersis e Carmelino se
preparavam para o pouso. A poucos metros deles, no toalete central,
vazio naquele momento, o fogo iniciado no depósito coletor de lixo
destruíra a tubulação dos exaustores.
A fumaça, que, até então,
limitava-se àquele compartimento, e escapava para fora do avião,
subitamente invadiu o banheiro esquerdo, contíguo, onde a última usuária
se encontrava sentada no vaso.
Ela tomou um enorme susto ao se ver
cercada pela fumaça. Não pensou duas vezes. Era preciso cair fora dali.
Abriu a porta e saiu, ainda ajeitando a roupa. Dirigiu-se a Mascarenhas
e Tersis e os avisou sobre a fumaça.
Os comissários correram para
examinar o toalete. A um metro de distância, no banheiro central, o fogo
atingira as primeiras conexões elétricas por detrás da parede, uma delas
correspondente ao aviso “retorne ao assento”, que ficava aceso durante
as operações de pouso e decolagem ou quando o avião enfrentava alguma
turbulência.
Na cabine de comando, o mecânico de
voo Claunor Bello percebeu que o disjuntor 77 no painel P-6,
correspondente ao aviso “retorne ao assento” de um dos banheiros, havia
sido desarmado. Claunor armou o disjuntor. Este saltou novamente. O
primeiro pensamento que ocorreu ao mecânico foi a hipótese de um
curto-circuito. Lembrou-se de comunicar o fato à manutenção da Varig em
Orly, após o desembarque.
Na cauda, a passageira voltara para
sua poltrona, apavorada. A notícia de que havia fumaça no banheiro
começou a se espalhar entre os ocupantes das últimas filas da classe
turística.
Todos sabiam que o avião estava
para pousar e passaram a torcer nervosamente para que isso acontecesse
logo. Os que se encontravam nas poltronas das janelas esticaram o
pescoço e viram com alívio que o Boeing já descera bastante, já sendo
possível ver o cinturão verde ao redor de Paris.
Acotovelados junto à porta do
banheiro esquerdo, Mascarenhas, Tersis e Carmelino examinavam o interior
do compartimento. Não era uma visão tranquilizadora. A fumaça agora
ocupava os dois terços superiores do toalete. Não havia sinal de fogo. A
fumaça descia do teto, do canto próximo à parede divisória com o
banheiro central.
Não ocorreu a nenhum deles
verificar o banheiro ao lado, por razões que lhes pareceram óbvias. Se a
fumaça saía do banheiro esquerdo, era lá o foco do incêndio.
Mas se tivessem aberto a porta do
banheiro central, onde o passageiro desconhecido jogara o cigarro no
receptáculo de papéis usados, teriam visto uma fumaça mais espessa. O
incêndio no material descartado e no plástico da cesta coletora
aumentara de proporção.
Os comissários tentaram pôr as
ideias em ordem. Como não adiantava ficar ali parado — preciosos
segundos já haviam se passado desde que a passageira dera o alarme da
fumaça —, Carmelino saiu em busca de um extintor. Era também preciso
comunicar o incidente ao comandante.
Não tendo visto chamas, Tersis
pensou que se tratava de um curto-circuito. Na falta de ideia melhor, e
sendo familiarizado com os equipamentos da galley traseira, seu posto de
serviço, foi até lá e cortou a alimentação elétrica dos equipamentos da
galley.
Os passageiros que viajavam na
cauda da aeronave, cada vez mais assustados, acompanhavam o vaivém dos
tripulantes. Alguns olhavam para trás, olhos arregalados. Outros
fechavam os olhos. O medo era visível no rosto de cada um.
Mas ninguém se levantou das
poltronas. Os das janelas percebiam que o avião voava cada vez mais
baixo. Do lado esquerdo, já era possível enxergar automóveis correndo
numa autoestrada.
Alguns casais se deram as mãos.
Outras mãos se crisparam, agarradas aos braços das poltronas. Os adultos
abraçaram as crianças, como se assim pudessem protegê-las. Eram muitas
as crianças a bordo do Varig 820.
Numa das filas dianteiras da classe
turística, a inspetora Hanelore Danzberg percebeu que algo de anormal
ocorrera lá atrás.
Em poucos segundos, Carmelino
chegou com um extintor. Mascarenhas se apossou do aparelho, retirou a
trava de proteção, puxou o gatilho e distribuiu o jato de CO2 pelas
paredes do banheiro esquerdo. O chiado produzido pelo extintor assustou
ainda mais os passageiros das filas de trás.
A notícia da fumaça já era de
conhecimento de toda a classe turística. Podiam-se ouvir alguns gemidos
angustiados. O som abafado dos passos dos tripulantes, correndo para lá
e para cá sobre o tapete do corredor central, contribuía com o clima de
medo.
Não tendo conseguido apagar o
incêndio, Mascarenhas saiu em busca do chefe de equipe Galetti.
Carmelino ficou no banheiro, tentando lidar com a fumaça.
Galetti tinha ido à cabine de
comando, informar-se sobre o tempo que faltava para o pouso. Ao
regressar, encontrara Diefenthaler, que não estava de serviço e que
percebera algo de anormal na cauda do avião.
Galetti e Diefenthaler seguiram a
passos largos para o setor de classe turística. No meio do caminho,
esbarraram com Mascarenhas, que avisou-lhes que havia muita fumaça num
dos toaletes traseiros.
Diefenthaler decidiu assumir o
comando da situação. Disse a Galetti que cuidaria da fumaça. Pediu ao
chefe de equipe que retornasse à cabine para avisar o comandante.
Galetti deu meia-volta. O mecânico foi para os fundos com Mascarenhas.
Encontraram Carmelino na porta do banheiro.
No banheiro esquerdo, Diefenthaler
pegara o extintor das mãos de Carmelino e dirigira o foco diretamente
para dentro do depósito coletor de papéis usados. Em seus 19 anos de
Varig, nos quais voara mais de 16 mil horas, Diefenthaler já lera
inúmeros relatórios de incêndios a bordo provocados por cigarros, em
diversas empresas aéreas. Era um problema crônico da aviação comercial.
O mecânico sabia do risco que os cigarros, verdadeiros pavios no bolso
das pessoas, representavam.
Mas como o incêndio era na lixeira
do banheiro ao lado (que nenhum dos tripulantes examinara), a
intervenção de Diefenthaler não surtiu o mínimo efeito.
O volume de fumaça aumentara muito.
Sufocado, os olhos ardendo, Diefenthaler retrocedeu para a área da
galley, de onde Carmelino, Mascarenhas e Tersis observavam ansiosos. Os
quatro se muniram de toalhas e guardanapos, que apressaram em umedecer
numa torneira da galley. Colocaram os panos no nariz.
Enquanto isso, lá na frente,
Galetti, antes de entrar no cockpit, disse rapidamente a Heleno e
Utermoehl, sentados no compartimento de descanso, depois a Coelho e
Balbino, em suas banquetas no corredor de saída, que havia fumaça num
dos banheiros da cauda.
Utermoehl decidiu apresentar-se ao
comandante e foi com o chefe de equipe para o cockpit. Heleno achou
melhor ir lá atrás dar uma olhada. Coelho saiu para inspecionar os
passageiros e verificar se todos estavam quietos em seus lugares.
Balbino optou por ficar onde estava.
A essa altura, o corre-corre dos
tripulantes e suas parlamentações nervosas apavoravam os passageiros.
Como estava na penúltima fila, o
passageiro Ricardo Trajano fora um dos primeiros a tomar conhecimento da
fumaça. Olhando para trás, por sobre o encosto da poltrona, procurava
acompanhar a movimentação dos tripulantes na área do incêndio. Pôde ver
a fumaça branca, não muito espessa, que saía de um dos banheiros.
Os cinco tripulantes que se
encontravam no cockpit olharam surpresos para trás quando Galetti abriu
a porta e entrou esbaforido, seguido de Utermoehl, e relatou que
acreditava haver um incêndio à bordo, dada a quantidade de fumaça vista
no banheiro da cauda. O 707 não dispunha de um sistema interno de fonia
que permitisse uma comunicação nos dois sentidos entre a cabine de
comando e a área da galley traseira.
Gilberto informou imediatamente a
Orly que estava com um problema de fogo a bordo, na parte posterior da
cabine de passageiros. Solicitou uma descida de emergência. Naquele
instante, o 820 sobrevoava a floresta de Rambouillet, 30 quilômetros a
sudoeste de Paris.
No Controle de Área, em Orly, assim
que ouviu a palavra “fogo”, e o pedido de emergência, o instrutor Claude
Audren tomou o microfone das mãos do estagiário Megret. Enquanto
recapitulava mentalmente a série de providências que teria de tomar,
Audren liberou o Varig para descer até o nível 30 (3 mil pés).
Os comissários de bordo avisaram
aos passageiros que havia um princípio de incêndio na lixeira de um dos
banheiros. Pediram a todos que se mantivessem em seus lugares e
seguissem suas instruções.
No Aeroporto de Orly, as
providências para receber a aeronave em situação de emergência começaram
a ser tomadas.
Em meio ao corre-corre do pessoal
de serviço, o passageiro Trajano, tomado de estranho poder de premonição
— e a despeito de os comissários terem pedido que todos permanecessem em
seus lugares —, erguera-se de seu assento, de onde acompanhara atento a
movimentação na cauda, pegara sua maleta no bagageiro em cima da
poltrona e fugira para a frente.
A situação se agravava. Os
comissários lutavam contra o fogo. A fumaça tomara conta do avião e os
passageiros estavam desmaiando.
O comandante contatou a torre de
Orly alertando que havia fogo a bordo. A torre, então, instruiu Gilberto
a desconsiderar as instruções anteriores e prosseguir na direção leste
para um pouso de emergência na pista 07.
A torre deu o "alerta vermelho".
Providências urgentes foram adotadas por Orly. Todas as aeronaves que
taxiavam em direção à cabeceira, para decolagem, foram orientadas a
ficarem paradas ou desviadas para outros pontos do aeroporto. No ar,
diversos aparelhos que se aproximavam de Orly foram instruídos a se
afastarem da área e circular.
Pousos e decolagens foram
suspensos. Os bombeiros receberam instruções para jogar espuma de gás
carbônico na pista 07-25. Na torre, alguns controladores, usando
telefones, suspenderam todas as atividades no solo, inclusive embarque e
desembarque de passageiros, transporte de bagagens e abastecimento de
aeronaves.
Na cabine de comando do PP-VJZ,
Gilberto, Fuzimoto, Basso, Zilmar e Claunor puseram máscaras de oxigênio
e óculos antifumaça. O oxigênio das máscaras do cockpit foi aberto a
100%. O piloto automático foi desligado.
Na cauda do Boeing, a situação
tornava-se insustentável. A comissária Elvira Strauss, ainda sentada em
sua poltrona na última fila, lutava para não perder a consciência.
Próximos a ela, Heleno e Mascarenhas, de pé na área da galley, portavam
extintores e se protegiam com panos molhados.
Com exceção de Trajano, que fugira
para a frente, os passageiros permaneciam em seus assentos, atados pelos
cintos de segurança, cumprindo rigorosamente as instruções dos
comissários. Mesmo porque o terror os paralisara. Aos poucos, os que
estavam mais atrás iam perdendo a consciência, intoxicados pelos gases
desprendidos pelo incêndio.
Diefenthaler e Carmelino ainda
pensavam ser possível evitar uma catástrofe. Procuravam chegar até as
janelas de emergência do Boeing, situadas sobre as asas, para abri-las,
quando viram Heleno e Mascarenhas surgindo do meio da fumaça, como dois
espectros, tendo ao rosto panos. Vinham dos fundos do avião e portavam
extintores.
O fogo, antes limitado aos papéis
da lixeira e aos fios elétricos dos banheiros da cauda, lambera o tubo
de borracha que alimentava a ventilação do corredor central. Finalmente,
o tubo se rompera. A fumaça agora descia do teto do corredor em rolos
negros e espessos. Invadira a cabine de passageiros, desenrolando-se de
trás para a frente como um manto de morte. A pequena guimba de cigarro
transformara o material usado na decoração do PP-VJZ em combustível de
uma câmara de gás.
Os passageiros do voo da morte
tombavam sobre si mesmos, em filas de seis, sem esboçar qualquer tipo de
reação, em meio a um silêncio quase que total. Ouvia-se não mais que
exclamações, fragmentos de preces, débeis gemidos.
O RG-820 enfrentava uma corrida de
vida ou morte contra o relógio. Mesmo com o tráfego liberado, e com a
mudança para a pista 07, faltavam ainda alguns minutos para a
aterrissagem.
Na classe turística, alguns
passageiros, próximos à cauda, começavam a morrer. Não se ouviam gritos.
Nem gemidos. Escutava-se apenas o silvo estridente das quatro turbinas.
Na primeira classe, a densidade dos
gases ainda não fora suficiente para matar ninguém. Mas, pouco a pouco,
os passageiros tombavam desmaiados. Tal como ocorrera na classe
turística, a exceção de Ricardo Trajano, nenhum deles se levantou para
tentar escapar do inferno, tal a rapidez com que foram imobilizados
pelos gases letais.
Os pilotos já não conseguiam ver os
instrumentos. E mais fumaça continuava penetrando — agora pela fresta
inferior da porta —, oleosa, viscosa. Colava nos vidros das janelas e
nos instrumentos do painel. O Varig 820 perdia sua luta contra a morte..
Gilberto e Fuzimoto, entretanto,
eram profissionais muito experimentados. Só que desta vez não enxergavam
absolutamente nada à frente do pára-brisa. Restava, como último recurso,
abrir as janelas do cockpit e pilotar com a cara do lado de fora, algo
que jamais fora tentado num 707.
Fuzimoto e Gilberto forçaram suas
respectivas janelas, para trás, pelos caixilhos. Antes tiveram de soltar
seus cintos dos ombros, ficando apenas com os cintos inferiores, que os
prendiam aos assentos.
Enquanto Fuzimoto pilotava,
Gilberto comandou 14 graus de flapes e acionou o trem de pouso.
Imediatamente sentiu-se a trepidação do atrito das rodas, que saíam de
seus compartimentos, com a corrente de ar que fluía sob a aeronave. A
potência foi reduzida e o freio aerodinâmico aplicado, aumentando a
razão de descida e, ao mesmo tempo, reduzindo a velocidade do 707.
Enquanto o Varig 820 lutava para
alcançar seu destino, na torre de Orly — e na sala IFR, um andar abaixo,
de onde se monitorava as operações de voo por instrumento — diversos
operadores haviam se dirigido às vidraças para ver o pouso. Já era
possível enxergar o Boeing, ao longe, lançando uma esteira de fumaça em
sua cauda, voando num nível mais baixo do que seria de se desejar.
Talvez desse para Fuzimoto chegar a
Orly. Ou, quem sabe, o Boeing teria explodido no ar, antes disso.
Poderiam também chegar e não ver a pista. O certo é que o piloto optou
por pousar no primeiro canto disponível.
Faltavam agora sete quilômetros,
menos de um minuto e meio, para o destino. Foram cumpridos 99,9% do
percurso. Tendo descartado o pouso em Orly, Fuzimoto empurrou o manche
para a frente, reduziu a potência das turbinas e tratou de perder
altura. Precisava encontrar um lugar para pousar. Mergulhou o Boeing em
direção ao solo.
O avião agora voava rasante.
Sincronizando pés e mãos, Fuzimoto, sempre atento ao curso de uma
estrada ao lado, imprimiu maior potência nas turbinas a fim de evitar um
aglomerado de casas e, com um rápido golpe para trás do manche, escapou
de uma rede de alta-tensão.
O Boeing corria paralelo aos carros
da autoestrada e aproximava-se da localidade de Saulx-les-Chartreux, no
setor sudoeste de Orly. Foi então que Fuzimoto viu, pelas janelas
laterais, logo após uma rede de eletricidade, o retângulo
verde-amarelado de uma plantação, entre uma colina e uma aldeia. Tinha
de ser ali. O Varig 820 encontrara seu destino.
Fuzimoto trouxe o nariz para cima,
deu um pouco de potência e ultrapassou a rede. Imediatamente decidiu
cortar os motores. Sua mão direita encontrou-se com a esquerda de
Gilberto, sobre as manetes. Reduziram a potência das quatro turbinas,
trazendo sincronizadamente as manetes para trás, como se tivessem
ensaiado aquele pouso.
Gilberto aplicou o que lhe restava
de freios aerodinâmicos. Pelas janelas laterais via-se que o chão
crescia assustadoramente. Faltavam cinco quilômetros para a cabeceira 07
de Orly, um minuto apenas de voo.
Na torre de Orly, os controladores
junto às janelas perceberam nitidamente quando o Varig 820, ao longe,
mergulhou em direção ao solo.
O primeiro impacto contra o terreno
se deu no trem principal. Apesar do choque, a desaceleração foi
suportável.
Os choques foram se sucedendo,
todos por baixo. Em cada um deles, o PP- VJZ perdeu um pedaço de sua
estrutura. Primeiro, os trens de pouso, que se soltaram de seus
compartimentos. Depois, as turbinas, arrancadas de seus berços, sob as
asas. Finalmente, a asa esquerda partiu-se. Mas o charuto da fuselagem
seguiu intacto, arrastando-se pelo terreno, a formidável inércia de suas
mais de 100 toneladas impelindo-o para a frente como um torpedo.
A cabine teria chegado intacta ao
final da plantação, onde parou ao cabo de 550 metros de arrasto, não
fosse uma árvore postada em meio às hortaliças, cujos galhos perfuraram
o nariz do Boeing, um pouco abaixo do pára-brisa esquerdo, destruindo o
radome (compartimento do radar), atingindo alguns instrumentos de bordo,
ferindo Gilberto na cabeça e no maxilar, fraturando um braço e uma perna
de Fuzimoto e rasgando uma das mãos do segundo- comandante. O bico do
avião parou a menos de dez metros de uma vala de irrigação, ao final da
horta, como se a aeronave tivesse sido calculadamente freada.
Após a imobilização da aeronave, o
interior do Boeing foi tomado de um silêncio sepulcral, como se os
ocupantes que ainda se encontravam conscientes estivessem apenas
conferindo se estavam vivos.
Imediatamente, a torre de Orly
informou ao Corpo de Bombeiros do aeroporto e aos serviços médicos de
Orly que o avião caíra antes da pista. Como, de onde estava, podia ver o
local aproximado da queda, direcionou as viaturas de socorro para lá.
Mas sabia que o processo não seria tão rápido quanto seria de se
desejar. Os carros teriam de sair do aeroporto e encontrar as ruas e
estradas que os levassem até o local do desastre.
Enquanto, em Orly, as primeiras
providências eram tomadas, no Boeing os tripulantes sobreviventes,
passado o choque inicial, tratavam de pular fora.
Os tripulantes que ocupavam o
cockpit saíram pelas janelas, lançando-se ao solo. Quando se arrastava
para longe do avião, o comandante Gilberto explodir o tanque de
combustível da asa direita.
Dos 17 tripulantes do PP-VJZ, dez
haviam se salvado do incêndio. Mas, e os passageiros? Mais da metade
ainda se encontrava viva, embora incapacitada de sair do avião por seus
próprios meios. Homens, mulheres e crianças permaneciam em seus
assentos, desmaiados.
Das margens do campo de hortaliças,
diversos lavradores constatavam, petrificados, que o incêndio ameaçava
tomar conta de toda a estrutura do Boeing.
Antes que os bombeiros de Orly
chegassem, e oito minutos depois que o PP- VJZ tocou o solo da
plantação, surgiram no local do acidente os efetivos de Longjumeau e
Palaiseau. Sendo unidades pequenas, e rurais, não contavam com espuma
anti-incêndio nem dispunham de equipamentos sofisticados.
Dentro do Boeing, o incêndio se
alastrara, desencorajando quem pensasse em se aproximar. Mas Jean-Marc
Veron, um bombeiro baixinho, de 24 anos, era um rapaz corajoso. Encostou
uma escada de ferro à porta principal, subiu por ela e deparou-se com um
corpo caído na passadeira. Embora supondo que se tratava de um cadáver,
puxou-o pelos longos cabelos. Muito queimado, interna e externamente,
Ricardo Trajano foi retirado do Boeing.
Na cabine de passageiros, as chamas
devoravam as últimas vítimas. Pouco mais de dez minutos haviam se
passado, desde a queda, quando chegaram os bombeiros de Orly. Muito mais
bem equipados, e treinados para aquele tipo de evento, os homens
cobriram a fuselagem com espessa camada de espuma anti-incêndio.
Em poucos minutos dominaram o fogo.
Mas sabiam que já não havia ninguém vivo dentro do Boeing. Os
passageiros do Varig 820, em sua maioria, resumiam-se a estátuas de
carvão, sentadas lado a lado, numa exposição macabra que os fotógrafos
iriam registrar e que ilustrariam as primeiras páginas de jornais de
todo o mundo.
Às 15h50, havia apenas uma tênue e
pertinaz coluna de fumaça saindo dos destroços. Todos os feridos já
tinham sido transportados para os hospitais. Restava às equipes de
resgate retirar e juntar os cadáveres.
Infelizmente, o pouso deixara um
saldo de 122 mortos, número que, alguns dias depois, se elevaria a 123,
na maior tragédia da aviação comercial brasileira até então. Apenas um
passageiro sobreviveu: Ricardo Trajano.
|
Este relato é
baseado na incrível narrativa contada pelo escritor Ivan
Sant ́Anna em seu livro "Caixa-Preta", lançado em 2000
pela Editora Objetiva. O livro retrata três desastres
que entraram para a história da aviação brasileira.
No livro você
encontra a história em todos os seus detalhes, incluindo
os acontecimentos que antecederam o voo, os diálogos a
bordo da aeronave e toda a sequência de fatos
posteriores à tragédia.
Clique
AQUI para mais detalhes sobre o livro.
|
|
|
O incrível
destino do piloto Gilberto Araújo
Após o acidente
ocorrido na França, o comandante Gilberto Araújo da Silva
ficou conhecido no mundo todo. Foi condecorado com a Ordem
do Mérito Aeronáutico, no grau de Cavaleiro pelo governo
francês e em 1975 ganhou o “Brevet de Ouro”, dado pela
Varig, em reconhecimento aos seus 25 anos de comando na
aviação comercial.
O comandante foi
afastado dos voos comerciais devido ao acontecido, passando
a fazer apenas voos regionais. Alguns anos após o acidente,
Gilberto recebeu a notícia de que voltaria a pilotar um
Boeing 707.
No dia 30 de janeiro de
1979, Gilberto estava no comando de outro Boeing 707 da
Varig, desta vez o de prefixo PP-VLU, um avião cargueiro que
levantaria voo do aeroporto de Narita, no Japão, em direção
ao Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro.
A aeronave foi
carregada com sua capacidade máxima. Dentro havia uma carga
incomum: 153 pinturas do pintor e pioneiro do abstracionismo
no Brasil, o nipo-brasileiro Manabu Mabe. Manabu Mabe estava
no Japão expondo seus quadros avaliados na época em US$ 1,24
milhão de dólares. O avião cargueiro levantou voo com 6
tripulantes e com uma carga aproximada de 150 toneladas.
Porém, cerca de trinta
minutos após sua decolagem em Tóquio, o avião desapareceu
sobre o Oceano Pacífico . Nenhum sinal da queda, destroços
ou corpos, jamais foi encontrado.
|
Esta incrível
história você acompanha clicando
AQUI. |
|
|
|