.
No ano de 1967, a Vasp
adquiriu seis Nihon YS-11 e batizou-os de “Samurais”, nome-fantasia que
homenageava o Japão, país de origem do avião. A Cruzeiro do Sul já vinha
operando com sucesso onze desses turboélices desde 1966. Equipado com
duas turbinas Rolls-Royce Dart de 3.060 HP, o “Samurai” transportava
sessenta passageiros nas rotas da Vasp de médio curso e grande densidade
de tráfego.
Na quarta-feira, 12 de abril de
1972, o Samurai PP-SMI decolou do Aeroporto de Congonhas às 20h30min com
destino ao Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Transportava 21
passageiros e quatro tripulantes sob a responsabilidade do comandante
Zenóbio Torres, de 29 anos, há seis anos na Vasp, empresa na qual
acumulava 6.517 horas de voo. O copiloto Carlos Alberto de Abreu
Valença, de 28 anos, com 3.462 horas de voo, recentemente concluíra o
curso de adaptação ao YS-11.
Também integravam a tripulação do
PP-SMI os comissários Edite Martins, de 24 anos, e Josemar Jacome da
Costa, de 19 anos. Viajavam como tripulantes extras o comandante Pedro
Bartolo, de 41 anos, instrutor de rota do equipamento YS-11, e o
comandante de Viscount Leonel de Mattos Rocha, de 36 anos.
Entre os passageiros encontravam-se
o Brigadeiro Mario Calmon Eppinghaus, comandante da Escola de Oficiais
Especialistas e de Infantaria de Guarda (EOEIG) da Aeronáutica, e Aarão
Knijnik, diretor-executivo da Shell do Brasil, sobrevivente do incêndio
que destruíra o Edifício Andrauss, em São Paulo, alguns anos antes.
O tempo bom fazia prever um voo de
rotina. O PP-SMI subiu para 10 mil pés de altitude e prosseguiu pela
aerovia Âmbar Meia (A-6), mão única no sentido de São Paulo ao Rio de
Janeiro, na época balizada pelos radiofaróis (NDB) de Mogi Guaçu, Santa
Cruz, Afonsos e Quebec, este último situado na Ilha dos Ferros. O tempo
estimado de voo era de uma hora, e a chegada ao Rio estava prevista para
as 21h30min.
Às 21h15min, o PP-SMI chamou o
controle de aproximação (APP) do Rio, informando que passava a posição
“Cará”, fixo de entrada do terminal (TMA) do Rio – área circular de cem
quilômetros de raio com centro nas proximidades do Aeroporto do Galeão.
Naquele momento, o Samurai voava a
dez mil pés (3.300 metros) de altitude. A partir daí, o APP orientou o
PP-SMI a descer para 7 mil pés na proa do NDB de Santa Cruz, devendo
informar no bloqueio daquele radiofarol. Minutos mais tarde, o PP-SMI
acusou no bloqueio de Santa Cruz, sendo autorizado a prosseguir descendo
para cinco mil pés na proa do NDB de Afonsos.
Às 21h24min, o Samurai da Vasp
informou o bloqueio do NDB de Afonsos a cinco mil pés, sendo liberado
para três mil pés na proa do NDB Q (Quebec), devendo reportar o bloqueio
daquele auxílio. Esta foi a última transmissão do Samurai.
Na tarde do dia seguinte, seus
destroços foram localizados em Muriqui, distrito de Secretário,
município de Petrópolis, a 46 km do Campo dos Afonsos e a 64 km do
Aeroporto Santos Dumont.
Com exceção de algumas poucas
nuvens esparsas, as condições meteorológicas na TMA RJ eram excelentes.
O teto e a visibilidade eram praticamente ilimitados, e todos os
auxílios à navegação e aproximação funcionavam normalmente.
Os dois minutos transcorridos entre
a última mensagem transmitida pelo piloto do Samurai, informando o
bloqueio de Afonsos, e o momento do impacto com a Serra Maria Comprida
evidenciaram que o avião jamais chegou realmente a bloquear o radiofarol
do Campo dos Afonsos, posição possivelmente informada com base apenas em
navegação estimada.
A Serra Maria Comprida,
em Petrópolis, o local do acidente
Foto:
trilhasdepetropolis.blogspot.com.br
Uma linha reta unindo o Aeroporto
de Congonhas ao local do acidente formava um ângulo de oito graus com a
rota que o PP-SMI deveria ter percorrido. O vento em altitude, que
soprava no quadrante sul, poderia ter concorrido para o desvio, porém os
pilotos contavam com vários auxílios eletrônicos de navegação para
corrigi-lo.
Na TMA RJ estavam disponíveis os
VORs de Piraí, Caxias, Itaipu Açu, além dos radiofaróis de Santa Cruz,
Nova Iguaçu, Afonsos, Galeão, Santos Dumont, Ilha dos Ferros (Quebec) e
Ilha Rasa. Os investigadores teriam que procurar as respostas para suas
dúvidas na cabine de comando do Samurai.
Há muito se sabe que o nível de
alerta dos pilotos varia em razão direta ao grau de dificuldade do voo.
Naquela noite, o céu era ‘de
brigadeiro’, e o voo até o Rio tão fácil quanto voltar para casa
dirigindo o próprio carro após um dia de trabalho. O Samurai estava com
30 por cento de sua capacidade e havia dois comandantes voando como
‘extras’. É possível que ao menos um deles estivesse na cabine de
comando, o que pode ter ensejado uma conversação descontraída entre
colegas de profissão.
Após o través de Ubatuba, o próximo
‘fixo compulsório’ (posição a ser informada ao órgão de controle de
tráfego aéreo) da A-6 era ‘Cará’, entrada da TMA RJ, posição virtual
estabelecida pela marcação magnética 092 graus do radiofarol de Santa
Cruz e por determinada radial do VOR de Barra do Piraí.
É provável que o primeiro elo da
cadeia de eventos que conduziu ao acidente tenha sido gerado quando o
VOR de Piraí foi sintonizado para determinar a posição ‘Cará’.
Possivelmente por alguma falha de operação (o copiloto talvez ainda não
estivesse bem familiarizado com todas as peculiaridades do Samurai), o
VOR de Piraí tenha sido inadvertidamente selecionado como ‘fixo ativo de
navegação’, fazendo com que o piloto automático tomasse a proa de Piraí
em vez da proa de Santa Cruz, manobra discreta que pode ter passado
despercebida aos pilotos.
Provavelmente o Samurai passou à
esquerda de Santa Cruz e ainda mais à esquerda do Campo dos Afonsos,
tendo o bloqueio desses dois NDB sido equivocadamente informado com base
apenas em navegação estimada.
Provavelmente, os pilotos não
perceberam que o avião tomara a proa de Piraí. Talvez distraídos pela
conversa com os ‘extras’, imaginavam que o Samurai continuava no rumo do
Rio. Na hipótese de terem observado que os ponteiros dos ADF indicavam
Santa Cruz e Afonsos ligeiramente à direita, podem ter acreditado
tratar-se de pequeno desvio, que não inspirava maiores cuidados.
A percepção de que havia algo de
muito errado com o voo deve ter-lhes assaltado ao sintonizarem o NDB Q
(Quebec), auxílio básico de procedimento de descida que deveriam
executar. Em vez do ponteiro ADF indicar a proa, apontou a lateral
direita, levando Torres e Valença a desconfiarem da correção dos sinais
recebidos daquele radiofarol. Há indícios de que tentaram sintonizar um
dos VORs do Rio quando o avião se chocou contra a encosta da serra.
Alguns dos ocupantes do
avião - Imagem: Jornal do Brasil
Somente alguns anos após o acidente
os VORs instalados no Brasil passaram a ser equipados com DME
(equipamento medidor de distância), que informa a distância em milhas
náuticas a que o avião se encontra do auxílio sintonizado. Como, na
época, o APP RJ não dispunha de radar, o controlador não “enxergava” o
avião e, portanto, não tinha como detectar eventuais erros de posição
geográfica dos pilotos.
A investigação concluiu que a causa
provável do acidente foi a baixa qualidade da navegação que vinha sendo
realizada pelos pilotos e o procedimento inadequado dos mesmos com
relação ao voo por instrumentos.
O acidente foi atribuído a erro de
pilotagem pela falta de correção da deriva e pelo fato de os pilotos
terem determinado o bloqueio fixo da aerovia, à noite, valendo-se apenas
da navegação estimada.
A segurança de voo se fundamenta em
elevado nível de alerta. Não é por outra razão que a maioria dos
acidentes ocorre em casa, lugar onde as pessoas sentem-se seguras,
imunes aos perigos do mundo exterior. Por sentirem-se assim, tendem a se
expor a perigos inusitados que, na melhor das hipóteses, redundam em
ossos quebrados e temporadas em hospitais.
Por paradoxal que possa parecer, a
facilidade do voo talvez tenha concorrido para o acidente. Uma conversa
informal na cabine de comando com os tripulantes extras pode ter
distraído os pilotos.
É possível que a pouca
familiarização de Valença com algumas das peculiaridades do sistema
diretor de voo do Samurai tenha originado o erro operacional que levou o
bimotor na direção das montanhas que circundam Piraí.
A partir da década de 1970, o
sistema de controle de tráfego aéreo brasileiro foi sendo
progressivamente dotado de radares.
Atualmente, todos os aviões que
percorrem nosso espaço aéreo são permanentemente vigiados e controlados.
Tudo isso, somado à introdução de sistemas independentes de navegação
inercial e por satélite, reduziu drasticamente o risco de voltarem a
acontecer acidentes causados por erro de posição geográfica dos pilotos,
como o que destruiu o Samurai PP-SMI da Vasp naquela noite de outono.
Na ocasião do acidente, chegou a ser desprezada a versão oficial que
apontava falha de navegação. Eram muitos os pontos contraditórios:
pilotos muito experientes que faziam ao menos quatro voos diários pela
ponte-aérea; a noite estava clara com luar e sem nuvens; e a torre do
aeroporto Santos Dumont não registrou nenhuma indicação de anomalia no
nesse voo.
Um único ponto pode se apontar como negativo: naquela época, os
passageiros não eram vistoriados nos embarques, como acontece hoje em
qualquer lugar do mundo. Isso possibilitava a um passageiro embarcar
armado se assim o desejasse.
Com todos esses ingredientes, a imprensa da época passou a especular a
possibilidade de que poderia ter havido um tumulto a bordo, causando o
misterioso acidente.
Claro que ninguém sobreviveu para contar o motivo que levou a aeronave
de fabricação japonesa, o YS-11 (Samurai) a se chocar com a serra, assim
como o Rio de Janeiro – por ser uma cidade de grandes proporções – não
pode ser confundida, muito menos por uma tripulação experiente, que a
cruzou sem se dar conta disso.
Na verdade o YS-11, nunca foi visto com bons olhos pelos passageiros que
costumavam usar com certa regularidade a Ponte Aérea RJ/SP, que viam com
certa apreensão quando esse equipamento estava designado para o
horário, causando um desconforto geral.
A partir desse acidente, o Electra II passou a ser o avião exclusivo da
ponte-aérea.
Sem caixa-preta para “contar a história”, a causa real desse acidente
tornou-se um mistério insolúvel.
Relatos transcritos do livro “O
Rastro da Bruxa”,
de Carlos Ari César Germano da Silva,
lançado pela EdiPucRS
e do
Blog
Hideo in japan.
Pesquisa e edição de texto: Jorge Tadeu da Silva
A cauda e o leme
estavam quase intactos, mas toda a fuselagem,
exceto a cabine
do piloto, pegou fogo com o impacto |
Os corpos dentro de
sacos aguardando serem içados pelos helicópteros de resgate |
No aeroporto, as
lágrimas depois de quinze horas de esperanças impossíveis |
Fotos: Revista Veja,
edição 189, de 19 de abril de 1972 |
|
Relato de Ângelo Teixeira de
Branco
Passageiro
que não pôde embarcar no voo que se acidentou.
Estava de
mudança do Rio e, no dia 12/04/1972, estava em São
Paulo providenciando a compra de um imóvel.
Porém, faltava
um documento para conseguir o financiamento na CEF -
Caixa Econômica Federal. Teria que ir com urgência
ao Rio para buscá-lo. Precisava chegar ao Rio, ir
até a Tijuca, pegar a chave do apto da Muda, pegar o
documento na Muda, voltar a Tijuca para deixar a
chave do apartamento da Muda, dar um beijo na esposa
e filho, ir até a rodoviária pegar ônibus para São
Paulo e... chegar na CEF às 10 horas da manhã
seguinte.
Nesse dia 12,
cheguei em Congonhas por volta das 19:30h. Fui ao
guichê comprar passagem e havia uma pessoa na minha
frente comprando a sua. Tocou o telefone, a moça do
caixa conversou com alguém, desligou e acabou de
atender o comprador.
Chegou a minha
vez. Iria pegar o voo da ponte aérea, o próximo voo
com destino ao Rio de Janeiro.
- Uma passagem
para o próximo voo.
- Próximo voo
apenas às 20:30h. – disse a moça.
- Mas você
acabou de vender uma passagem para as 20 hs! Os
passageiros estão ali esperando para embarcar –
disse eu apontando para a área de embarque.
- Infelizmente
já informei o número de passageiros e não posso mais
vender passagem para esse voo. Agora só para as
20,30h.
- Tudo bem,
fazer o quê?
Embarquei às
20:30 hs. Voo tranqüilo. Devido a minha pressa,
desci do avião e, correndo para pegar um Táxi, fui o
primeiro a chegar ao saguão do aeroporto.
Havia pessoas
esperando no desembarque, homens, meninos, mulheres
(esposas?), etc... Antigamente as pessoas da família
iam buscar os entes queridos nos aeroportos.
Fui
praticamente barrado no saguão:
- Esse voo é o
das 20 hs? – perguntaram as pessoas que estavam na
espera.
- Não. Esse é o
das 20:30 hs – disse e continuei andando, homens e
mulheres atrás de mim insistindo:
- O Senhor tem
certeza?
Para cessar o
assédio, quase no ponto de Táxi, mostrei minha
passagem.
O avião YS-11
da VASP, o Samurai, havia caído sem deixar
sobreviventes. Acho que foi o último Samurai.
É uma sensação
horrível você se dar conta que aquele avião que saiu
antes não chegou, olhar a expressão no rosto
daquelas pessoas... a reação é uma coisa
indescritível.
Toda vez que
tenho notícia de queda de avião começa na minha
mente aquele filme do saguão do aeroporto. É muito
triste... |
|
|
|
Ficha técnica
Data: 12.04.1972
Hora: 21h26min
Aeronave:
NAMC YS-11A-211 “Samurai”
Operadora:
VASP - Viação Aérea São Paulo
Prefixo:
PP-SMI
Número de Série:
2059
Primeiro voo:
1968
Tripulantes: 4
Passageiros: 21
Partida:
Aeroporto de Congonhas (CGH/SBSP), São Paulo, SP
Destino:
Aeroporto Santos Dumont (SDU/SBRJ), Rio de Janeiro, RJ
Local da ocorrência:
Petrópolis, RJ
Fatalidades: os
25 ocupantes: 4
tripulantes e 21 passageiros
O 'Samurai'
PP-SMI
|
|
A
aeronave
NAMC YS-11
O NAMC YS-11 é um
avião turbo-hélice construído por um consórcio japonês, o Nippon
Aircraft Manufacturing Corporation. O programa foi iniciado em
1954 pelo MITI - Ministry of International Trade and Industry
(Ministério de Comércio Internacional e Indústria).
Seu primeiro voo foi em
1962, e sua produção terminou em 1974.
As variantes YS-11A-211 e
YS-11A-212, com incremento na capacidade de peso, foram
adquiridas pela Vasp.
Dois 'Samurai's':
um da Vasp e outro da Cruzeiro do Sul
Foto:
wetwing.com
|
|
. |
|
.
CLIQUE NA SETA ABAIXO E
CONTINUE ACOMPANHANDO ESTA MATÉRIA.
|
|
Texto e edição de imagens
por Jorge Tadeu da Silva |
|
Fontes de pesquisa:
Livro 'O Rastro da Bruxa' / Revista Veja / ASN
Jornal do Brasil / Folha de S. Paulo / Wikipédia
. |