Julio Cezar Ribeiro de
Souza, pioneirismo esquecido. Pesquisador paraense que se inspirou em
aves para desenvolver dirigibilidade aérea sofreu plágio e foi esquecido
pela História.
Em 1880 as tentativas do
homem em conquistar o ar dividiam-se em duas grandes correntes: a
aviação e o balonismo. A aviação não tinha êxito devido principalmente à
falta de motores potentes o suficiente para que os primeiros modelos
alçassem vôo. Já no balonismo, a ascensão não era impedimento. A
dificuldade estava na dirigibilidade. Cerca de 170 anos após o
brasileiro Bartolomeu Lourenço de Gusmão ter realizado a primeira
ascensão de um balão com ar quente, outro brasileiro deu aos aeróstatos
a sonhada dirigibilidade. O cientista paraense Julio Cezar Ribeiro de
Souza uniu características do balonismo e da aviação e assim criou um
sistema de navegação aérea original, baseado no voo dos pássaros
planadores, preconizando a estrutura fusiforme dissimétrica dos balões.
Essa forma se expressa num formato mais volumoso da proa e afilado da
popa. Este desenho viria a ser o dos consagrados zepelins que cruzaram o
Atlântico e deram a volta ao mundo na primeira metade do século 20.
Julio Cezar Ribeiro de
Souza nasceu na Vila de São José do Acará, no atual estado do Pará, em
13 de junho de 1843, e ficou órfão de pai ainda criança. Em Belém do
Pará fez estudos primário e secundário antes de transferir-se para o Rio
de Janeiro, então capital do Império e aí completou o curso preparatório
da Escola Militar. Em 1866 seguiu para Montevidéu, onde se integrou às
forças militares brasileiras na Guerra do Paraguai. Foi durante a
guerra, em 1867, que houve o primeiro uso militar de balões de
observação na América do Sul. Em 1868, quando ocupava o posto de
segundo-cadete do 3o Batalhão de Artilharia a pé, teve seu pedido de
escusa do serviço militar recusado pelo comando militar brasileiro. Em
seguida, foi deslocado para o Paraguai, de onde retornou ao final de
1869.
A partir de 1870 ele se
ocupa do jornalismo e magistério, além de cargos como funcionário
público. Apesar de seu talento como jornalista e poeta e para línguas,
foi sem dúvida a navegação aérea a maior das contribuições de Julio
Cezar Ribeiro de Souza. Segundo seus relatos, datam de 1874 os primeiros
estudos sistemáticos do vôo dos pássaros em busca de uma teoria para
viabilizar a navegação aérea. Mas foi só em 1880 que saíram publicados
os resultados dessas pesquisas. Em 29 de julho desse ano escreveu uma
carta ao presidente da Província do Pará revelando ter encontrado o
ponto de apoio dos corpos mais leves que o ar e solicitando uma
audiência reservada para, na sua presença e na dos homens da ciência da
Província, expor sua teoria. Ainda nesta carta registrou que, caso
ficasse reconhecido o mérito de sua descoberta, esperava que fossem
solicitados ao governo do Império os meios para que se pudesse mandar
construir na Europa um balão segundo seu modelo e que lhe fossem
garantidos os privilégios da invenção.
Com a audiência, as
opiniões se dividiram, o que o levou a fazer, ainda em Belém,
demonstrações públicas com protótipos de balões para comprovar suas
teorias. Julio Cezar Ribeiro de Souza já havia utilizado balões
pequenos, com até 2 metros de comprimento. Para a demonstração constrói
um balão de 6 metros de comprimento e 2 metros de maior diâmetro,
experimentando-o na presença de poucas pessoas, no dia 30 de agosto de
1880. Em seguida preparou um balão ainda maior, com papel coberto de
gelatina, que deveria ser preenchido com hidrogênio, produzido no
gasômetro da cidade. A experiência não ocorreu no dia marcado porque não
foi possível a produção do gás. O inventor paraense logo se convenceu de
que, mesmo que conseguisse produzir o hidrogênio, o material de que
dispunha para fabricar balões era inadequado.
Em nota publicada em
jornal local, esclarece à população a impossibilidade de realizar uma
experiência definitiva de seu invento no Pará, anunciando que deveria
brevemente embarcar para a capital do Império. No Rio de Janeiro, dirige
um ofício ao Instituto Politécnico Brasileiro, pedindo uma sessão
pública para expor sua teoria, o que ocorre em 15 de março de 1881,
quando é feita a leitura de sua Memória sobre a Navegação Aérea,
documento que se encontra atualmente no Arquivo Nacional. A comissão
designada para analisar seu trabalho emite parecer favorável, que passa
a ser discutido nas reuniões do Instituto. A Assembléia Provincial do
Pará aprova a concessão de uma subvenção no valor de 20 contos de réis
para a construção de um balão de acordo com seu sistema, condicionada à
aprovação do parecer da comissão, o que ocorre em seguida, juntamente
com a concessão da patente brasileira de seu sistema de navegação aérea,
aplicável à navegação submarina.
Julio Cezar Ribeiro de
Souza viaja para França em setembro de 1881 para providenciar a
construção de seu balão. Em Paris contrata os serviços da Casa Lachambre
para este fim e procura patentear sua invenção em algumas das principais
capitais européias. A patente francesa foi a primeira a ser obtida, em
25 de outubro daquele ano. Dois dias depois faz a leitura de uma versão
em francês de sua Memória sobre a Navegação Aérea diante da Sociedade
Francesa de Navegação Aérea (SFNA).
Pronto o balão Victoria,
em homenagem a sua esposa, com dez metros de comprimento e dois metros
de maior diâmetro, realiza experiências em Paris nos dias 8 e 12 de
novembro, obtendo êxito, conforme noticiado pela imprensa parisiense. No
primeiro dia dessas experiências, Julio Cezar foi recebido como membro
associado da SFNA. Em seguida, retorna a Belém, deixando encomendada na
Casa Lachambre a construção de um grande dirigível, capaz de realizar
voos tripulados. Curiosamente, Alberto Santos Dumont, cerca de 16 anos
mais tarde, contrataria os serviços dessa mesma Casa para a construção
dos seus primeiros balões.
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Desenho explicativo
do pedido de patente do dirigível Vitória,
de Júlio César
Ribeiro de Sousa, datado de 1881 |
De volta ao Pará, Julio
Cezar repete, na manhã do Natal de 1881, as experiências realizadas na
França, cujo êxito é noticiado com entusiasmo pela imprensa local. No
início de 1882 viaja para o Rio de Janeiro onde também faz demonstração
pública no dia 29 de março, na Escola Militar, de que tinha sido aluno,
em presença do imperador Dom Pedro II e de grande número de pessoas.
Pelo fato de o Victoria
ser um balão de testes, sem capacidade para deslocar o peso de um homem,
devia ser conduzido do solo, por meio de manobras que consistiam em
largar as extensas cordas que o prendiam, a fim de que se percebesse que
não era levado pelo vento como um balão comum, mas, ao contrário,
navegava na direção de sua proa, mesmo que oposta à corrente de ar. As
pessoas que assistiram à experiência, provavelmente por não entenderem
que pouco além disso poderia ser feito com um balão com aquelas
dimensões, ou por não terem sido devidamente alertadas para o tipo de
experimento que seria realizado, ficaram desapontadas.
Muitas pessoas presentes à
experiência no Rio de Janeiro não entendiam que, antes de construir um
balão dirigível de grandes dimensões, demandando enorme quantidade de
recursos, era necessária a realização de experiências com um protótipo
de dimensões reduzidas. O objetivo de Julio Cezar, plenamente alcançado
na França, segundo atestaram especialistas na área, não foi compreendido
pelas pessoas que assistiram à demonstração na Escola Militar. E isso
dificultou a obtenção dos recursos para a conclusão do dirigível
encomendado em Paris.
A experiência no Rio
deflagrou um intenso debate sobre as idéias de Julio Cezar, tanto no
Instituto Politécnico como na imprensa carioca, o que se estendeu por
alguns meses até a aprovação por unanimidade no Instituto de uma moção
em favor da viabilidade teórica do processo, em 23 de junho de 1882.
Obtida a autorização, o inventor retorna a Paris em dezembro desse ano e
contrata definitivamente os serviços da Casa Lachambre para a construção
do seu grande balão. Pressionado pelos custos de estada em Paris, volta
a Belém para aguardar a conclusão do dirigível. Após o recebimento de um
telegrama do construtor, retorna à França, mas sem recursos para encher
o balão com hidrogênio e consciente das dificuldades em fazer a
experiência no Brasil, devido à falta de pessoal capacitado, solicita à
prefeitura de Paris permissão para realizar uma exposição paga de seu
balão, o que lhe é negado. Aparentemente sem alternativa, retorna com o
balão e seus acessórios para Belém.
Em julho de 1883, na
capital paraense, Julio Cezar Ribeiro de Souza tenta obter 16 contos de
réis para a produção dos quase três milhões de litros de hidrogênio
necessários ao enchimento do balão. Com esse objetivo, recebe
autorização do bispo do Pará para expor seu dirigível no interior da
catedral de Belém, e realiza conferências no Teatro da Paz. Os recursos
só são obtidos quase um ano depois de seu retorno, fornecidos pela
província do Amazonas, e a tentativa de ascensão do balão, que foi
denominado Santa Maria de Belém, com 52 metros de comprimento e 10,4
metros de maior diâmetro, foi marcada para a manhã do dia 12 de julho de
1884, em Belém.
A exemplo do que ocorrera
na primeira exposição pública, em 4 de outubro de 1880, dificuldades
relacionadas à produção de hidrogênio impediram a ascensão do balão. A
explicação para isso foram perfurações nas mangueiras de condução do gás
por derramamento acidental de ácido e por danificação de uma das
baterias auxiliares.
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O balão La
France, plágio de um projeto de Julio Cezar |
Em seguida Julio Cezar
recebe a notícia de que, em 9 de agosto de 1884, os capitães franceses
Charles Renard e Arthur C. Krebs, no dirigível militar La France, com
aproximadamente as mesmas medidas (52,4 metros de comprimento e 8,4
metros de maior diâmetro) que o Santa Maria de Belém, haviam realizado
pela primeira vez na história um percurso fechado a bordo de um balão,
retornando ao ponto de partida após percorrerem aproximadamente 7.600
metros durante 23 minutos. O La France possuía a estrutura fusiforme
dissimétrica preconizada por Julio Cezar, sem que seus projetistas
tivessem feito qualquer referência às teorias do inventor brasileiro,
apesar de estas terem sido patenteadas na França quase três anos antes
daquela data.
Esse acontecimento faz com
que Julio Cezar Ribeiro de Souza escreva um longo protesto intitulado A
Direção dos Balões, publicado na imprensa paraense, em português e
posteriormente em francês, e encaminhe ao Instituto Politécnico
Brasileiro um requerimento solicitando a prioridade do sistema de balões
fusiformes dissimétricos, cujo parecer favorável é aprovado pelo
Instituto em 2 setembro de 1885. Após esta aprovação, a Assembléia
Provincial do Pará concede um novo auxílio no valor de 25 contos de réis
a Julio Cezar. Ele retorna à Europa disposto a provar a primazia de seu
invento. Após uma breve passagem por Londres, chega a Paris no início de
maio de 1886, propondo-se debater publicamente o assunto com Renard e
Krebs. Uma vez que os capitães franceses não aceitam o debate, Julio
Cezar, de posse de um novo balão de testes do seu sistema, denominado
Cruzeiro, realiza experiências em 11 e 16 de junho daquele ano, na
presença da representação brasileira em Paris, após o que retorna a
Belém.
O Plágio dos Militares
Franceses
No Pará, dedicou-se a
escrever um livro em francês intitulado Fiat Lux, segundo suas próprias
palavras: "(...) expondo com a máxima minúcia a teoria de navegação
aérea e o meu sistema nela fundado, e provando à sociedade, não só que o
sistema tantas vezes experimentado na França, com pleno êxito pelos
capitães franceses Renard e Krebs, é apenas um plágio, e plágio caricato
do meu, como, apesar dos mistérios que o põem fora do alcance de um
exame minucioso, já o declarou o Instituto Brasileiro, e, antes deste,
publicações científicas da Europa (...)". Julio Cezar passou a publicar
em partes, na imprensa paraense, a partir do início de junho de 1887,
uma tradução deste livro para o português. A série foi interrompida em
agosto seguinte, quando já enfermo, falecendo em 14 de outubro, vítima
de beribéri, enfermidade relacionada à deficiência de vitamina B1. Nesse
momento, ocupava o cargo de chefe de seção da secretaria do governo da
Província do Pará.
As dificuldades em fazer
reconhecer a primazia de um brasileiro na conquista do ar não atingem
isoladamente este paraense notável. Os irmãos franceses Joseph Michel e
Etienne Montgolfier são considerados por muitos como os pioneiros na
ascensão de balões de ar quente, apesar de o padre santista Bartolomeu
Lourenço de Gusmão ter realizado em Lisboa as primeiras ascensões
públicas do gênero mais de setenta anos antes, no início de agosto de
1709. Mesmo o mineiro Alberto Santos Dumont, que também aplicou as
idéias de Julio Cezar em seus balões, teve a primazia de suas
realizações questionada diante dos irmãos Orville e Wilbur Wright.
Embora seja inconteste que foi Santos Dumont quem projetou e pilotou o
primeiro engenho "mais pesado que o ar" a erguer-se do solo por meio de
um motor próprio, realizando um vôo ao longo de 60 metros, em 23 de
outubro de 1906.
Julio Cezar Ribeiro de
Souza foi o homem que, após vários anos de minuciosas observações e
exaustivos estudos do vôo dos pássaros, estabeleceu as bases da
aeronáutica e aerodinâmica modernas, ao propor, em 1880, fundamentado em
uma teoria de navegação aérea, o tipo fusiforme dissimétrico ou
assimétrico dos balões, tendo realizado as primeiras experiências que
comprovaram suas teorias em Paris, em novembro de 1881.
Poucos meses antes de sua
morte, Julio Cezar deixou registrada na imprensa paraense a seguinte
frase que expressa sua desilusão: "O mundo inteiro está completamente
mistificado pelos felizes plagiários do meu invento, para quem, num país
de economias, chovem os milhões para balões colossais do meu sistema,
quando eu só tive migalhas no país dos grandes esbanjamentos, onde a
ciência está completamente mistificada".
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