Pintado de azul escuro, com a inscrição "number 1", o Fokker 100, prefixo PT-MRK, da TAM (o da foto ao lado), taxiou pela pista 17 R do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Eram 8 horas e 26 minutos da quinta-feira, 31 de outubro. A bordo, o plano do voo 402 indicava que o avião deveria chegar à cabeceira dos 1.800 metros de pista, a mais de 33 metros de altura. Acelerando em linha reta, o piloto José Antônio Moreno, 35 anos de idade e nove mil horas de voo, ganharia pelo menos 165 metros de altura quando, então, faria uma curva à esquerda. Seria o caminho certo para levar 90 passageiros e outros seis tripulantes ao Rio de Janeiro.
O Fokker não conseguiu ultrapassar os programados 33 metros de altura. Segundo registraram os radares do Centro Integrado de Defesa Aérea (Cindacta) e Controle do Tráfego Aéreo, sua velocidade batia em 300 quilômetros por hora. Tinha os tanques cheios de querosene e viajava com apenas 18 lugares vazios. Cerca de 20 segundos após a decolagem, a dois quilômetros da cabeceira sul de Congonhas, o avião bateu com a asa direita no teto de um edifício de três andares, localizado no Jabaquara. Transformado numa bola de fogo, bateu sucessivamente em outros dois prédios e destruiu totalmente oito casas. Outras 11 foram atingidas por pedaços da fuselagem. Espalhou labaredas, destroços, pânico e mortes na rua Luís Orsini de Castro. Às 8 horas e 28 minutos dava-se a maior tragédia já registrada no Aeroporto de Congonhas. O voo 402 não deixou sobreviventes. O PT-MRK matou três moradores do Jabaquara.
O laudo do acidente previsto para sair em 90 dias, demorou mais de um ano, exatamente 406 dias. Atendendo a interesses inconfessáveis, não apontou a TAM como responsável pelo acidente. A Comissão teve 11 membros integrantes, 11 deles pertencentes a empresas envolvidas. Não havia representante das vítimas. Mais tarde, a Justiça corrigiu esse "deslize".
O que ocorreu com o voo 402
8:00 hs
. Defeito
Os problemas começam no pouso no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Os dados da caixa-preta indicam que o reverso - mecanismo que inverte o sentido do jato da turbina para a frente, dando efeito de marcha à ré do motor direito permaneceu ''em trânsito'', ou seja, não ficou travado.
. Reação da tripulação
Nem os tripulantes que trouxeram o avião a São Paulo nem os que decolaram de Congonhas tomaram atitudes, porque a aeronave não deu alerta do defeito. Os técnicos de manutenção também não detectaram o problema, porque a manutenção feita em escala de voo não previa checagem das travas.
. Conclusão
A trava elétrica do reverso falhou, por causas indeterminadas, que podem até incluir efeitos da trepidação da aeronave. O projeto também contribuiu para a falha, porque a posição da trava dificulta a manutenção.
8:26 hs
. Defeito
Com 89 passageiros e seis tripulantes a bordo, o avião começa a correr pela pista para a decolagem. Ainda no chão, dispara um alarme da cabine indicando falha no sistema que acelera automaticamente o avião (ATS).
. Reação da tripulação
Os tripulantes ignoram o alarme, que volta a tocar depois. Eles tinham sido informados pelo piloto que voara anteriormente que o sistema estava com defeito.
. Conclusão
A falha de ATS causou nos pilotos uma ilusão de que havia uma falha ali, o que contribuiu para o acidente.
Início do voo
. Defeito
No exato instante em que o avião sai do chão, o reverso da turbina direita se abre e inverte a propulsão daquele motor para trás, como uma marcha à ré. Na cabine, o painel não dá nenhum sinal de alarme, mas o manete de aceleração do motor recua violentamente, puxado por um sistema de cabos de segurança ligado ao reverso. O sistema serve para evitar que o reverso fique aberto com o motor acelerado.
. Reação da tripulação
O co-piloto diz ''Travou!'', surpreso. Imaginando estar diante de uma falha de aceleração automática (ATS), diz ao co-piloto para desligar o ATS. O co-piloto confirma ter desligado o sistema.
. Conclusão
a - A Fokker introduziu uma modificação no sistema elétrico de abertura do reverso que o tornou menos seguro. A mudança objetivava economizar alguns segundos na duração da bateria no caso de uma pane elétrica em voo. Antes, a chance de esse tipo de falha ocorrer era de uma em 100 bilhões. Depois, passou a ser uma em 1 milhão.
b - O projeto do avião contribuiu para o ocorrido porque não permite que o piloto saiba, durante a decolagem, que o reverso está aberto.
c - A surpresa demonstrada pelos tripulantes desviou sua atenção e contribuiu para o acidente.
10 segundos seguintes
. Defeito
O defeito é cíclico. O reverso se fecha, mas volta a abrir outras duas vezes em 10 segundos. Quando fechado, permite que o manete possa ser levado à frente. no momento em que o reverso se abre, o manete volta a ser recuado e permanece travado. O avião estava a 129 pés.
. Reação da tripulação
Os tripulantes aceleram a turbina direita sempre que o equipamento permite. Na segunda vez em que o manete direito recua, a mão do tripulante traz junto o manete do motor esquerdo. Por quatro segundos, os dois motores ficam com aceleração mínima. Quando o manete está travado, a força exercida pelo piloto ou pelo co-piloto sobre ele chega a ser de 50 kg.
. Conclusão
A ação dos tripulantes sobre o manete contribuiu para o acidente por duas razões:
a - A legislação brasileira não recomenda qualquer ação de tripulação frente a qualquer anormalidade, na cabine de voo, quando a aeronave estiver a menos de 400 pés de altura.
b - Os tripulantes decidiram acelerar o motor direito quando o manete destravou, sem que o avião tenha fornecido a eles meios para que avaliassem o resultado dessa atitude.
15 segundos de voo
. Defeito
O sistema de cabos de segurança que evita a abertura do reverso com o motor acelerado cede. O manete de aceleração da turbina direita é liberado, embora o reverso permaneça aberto. O defeito desestabiliza por completo a aeronave.
. Reação da tripulação
A tripulação mantém a carga sobre o manete e o leva à frente (acelerando o motor) no momento em que ele fica livre.
. Conclusão
Houve falha no desenho do sistema. O cabo corre em um tubo, em que existe uma lacuna, deixada para manutenção. Foi nesse ponto em que a conexão do cabo cedeu à carga e desencaixou-se.
24 segundos de voo
. A tragédia
O avião, impulsionado para a frente pelo motor esquerdo, e para trás pela turbina direita, tomba para a direita e cai sobre casas, matando todos a bordo e quatro pessoas em terra.
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Recordando
Folha de S.Paulo (BOL - 01/11/1996 - 21h50)
O comandante Rolim Adolfo Amaro, fundador e presidente da TAM, chegou nesta sexta-feira (1) a São Paulo às 6h30, depois de pilotar quase a noite inteira seu jato Cessna Citation, vindo do Caribe. Às 15h, ele concedeu entrevista coletiva no aeroporto de Congonhas e afirmou que vai indenizar todas as vítimas que estavam a bordo do Fokker 100 sem que seja necessário qualquer iniciativa legal por parte das famílias. As demais vítimas, que foram mortas fora do avião, deverão entrar em contato com a TAM para que o caso seja encaminhado à Unibanco Seguros. A empresa está disposta a fazer acordo com as pessoas que foram prejudicadas e não estavam na aeronave.
"Faremos tudo para minimizar a dor das famílias", afirmou o presidente da TAM. O dinheiro a ser pago aos beneficiários das vítimas não deverá sair dos cofres da companhia. Isso porque, segundo a diretoria da empresa, a apólice de seguro feita pela TAM cobriria todas essas despesas.
O seguro da companhia cobre a aeronave, as vidas dos passageiros, tripulantes e terceiros - ele é da ordem de 429 milhões de dólares. Destes, 29 milhões de dólares são contra danos na aeronave e o restante contra os danos materiais e pessoais de terceiros.
"O valor é algo próximo a isso e será mais que suficiente para cobrir quaisquer prejuízos com o acidente", disse José Rudge, presidente da Unibanco Seguros.
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Minhas considerações
Algumas pessoas aceitaram receber valores irrisórios a título de indenização nos dias seguintes ao acidente, ainda sob forte impacto emocional. A empresa obviamente aproveitou-se dessa condição. Eu estava lá, no Golden Flat (local para onde fomos levados, ao lado do aeroporto) e também sofri pressões nesse sentido. Muitos que aceitaram posteriormente não puderam recorrer à Justiça. Alguns buscaram a justiça americana contra as empresas fabricantes das peças defeituosas e, as demais - eu e minha família, por exemplo - acionamos a justiça brasileira. Vencemos em todas as instâncias. A pedida inicial teve o valor reduzido para 1/10 do pleiteado e, mesmo assim, até hoje nada nos foi pago.
Considero esses fatos uma ofensa a minha dignidade, um atentado ao meu direito do cidadão, uma chacota por parte das empresas TAM e Unibanco Seguros que, se valendo do poder econômico e das brechas da Lei, vêm há dez anos postergando o pagamento de uma causa ganha, mesmo tendo o valor para o pagamento desde o dia do acidente por meio do seguro no valor de 429 milhões de dólares.
Observo isso como mais um exemplo de que onde há uma relação desigual de forças, a legislação deste país favorece os poderosos, comprovando que existem duas classes de cidadãos perante a Lei, os de primeira e os de segunda classe.
Revolta que a aparente correção e a palavra empenhada, pelo falecido presidente da TAM, não passaram de ações de marketing, inverdades para a imprensa com o intuito de preservar a imagem da TAM. Ação essa que deu certo, pois além de ser eleita a "Empresa do Ano" (Revista Exame - Maiores e Melhores) tornou-se um "case" para marqueteiros e assessores de comunicação, um exemplo de como lidar com situações difíceis sem o menor escrúpulo.
A sensação que restou - além do trauma e dos altos prejuízos acarretados pelo acidente - é de descrença nas palavras desse tipo de pessoas, nas instituições que deveriam nos proteger, enfim, um sentimento de impotência diante de tamanho aviltamento, descaso e impunidade.